*Essa história não tem nenhuma relação com o Brian
-
Londres, conhecida capital inglesa, cidade esta que é uma das
principais paradas para quem quer conhecer a Europa, certamente, quando se
falam em Londres, a primeira coisa que vem a mente da pessoa é a torre do
relógio do Big Ben, o principal cartão postal da cidade. Mas agora eu não
contarei a história de nenhum “ponto turístico” londrino, aliás, eu falarei de
um local conhecido por muitos poucos, mas que ainda assim é cheio de histórias,
a maioria delas não muito agradáveis.
O local em questão está localizado na Praça Berkeley, sendo
mais específico, esse local é o prédio de número 50 dessa área residencial.
Quem olha de longe acha que é mais um prédio qualquer, mas os que pensam dessa
forma são aqueles que não fazem ideia das terríveis coisas que já aconteceram
por ali, sendo mais específico no último andar.
Então comecemos do princípio, falando um pouco dessas
histórias desde o caso mais antigo. Esse mesmo ocorreu nos anos 1700, quando
uma menina que morava no último andar foi assassinada por um criado, há relatos
que essa mesma garota hoje é vista frequentemente pelo mesmo andar chorando e
torcendo as próprias mãos em desespero. Outro caso conhecido ocorrido ali é de
uma mulher que fugia do seu tio que tentava abusa-la sexualmente, e acabou
caindo por uma das janelas e morrendo, muitos alegam que veem seu fantasma
pendurada no peitoril da janela.
Após uma longa época desocupada, a casa foi comprada por um
homem chamado Sr. Dupre, que tinha um irmão louco e o deixava trancado em um
quarto do último andar, não o deixando sair de jeito nenhum, tendo assim que
alimenta-lo através de uma abertura especial na porta. Dizem que esse quarto é
o centro das assombrações.
No ano de 1879, foi reportado de que uma senhora que passou a
noite no último andar foi achada fora de si, e no dia seguinte a mesma foi
encontrada morta no hospício em que tinha sido internada. No dia do corrido, um
homem aceitou o desafio de passar uma noite no último andar, e foi a primeira
morte gravada no local.
Durante as épocas em que o local esteve desocupado, os
vizinhos alegam terem ouvidos vários gritos e gemidos vindos de dentro da casa,
móveis se movendo, campainhas tocando, janelas batendo, e nos piores casos,
alguns diziam sentir alguma presença estranha observando-a lá de dentro.
Atualmente o local abriga uma livraria, e estranhas
ocorrências são relatadas por funcionários e clientes constantemente. O último
andar é mantido trancado e absolutamente ninguém tem permissão de entrar lá.
Aquela era uma agradável tarde de quinta-feira em Londres, o
sol brilhava forte no céu, o vento soprava suavemente, e as pessoas seguiam
suas rotinas de forma tranquila. Isso incluindo na livraria localizada nas
redondezas da Praça Berkeley, onde o movimento estava intenso, muitos estavam à
procura do mais novo grande lançamento, era mais um daqueles livros de
infanto-juvenil que acabam virando febre. Várias pessoas chegaram à loja a
procura daquele livro, tanto que o estoque estava chegando perto do fim.
Mas mesmo com o grande movimento em que a livraria estava
naquele dia, dois funcionários conseguiram tempo para irem tomar um café na
cafeteria da esquina. Charlie e David tinham começado a trabalhar ali há mais
ou menos dois meses, ambos em seus vinte e cinco anos.
Charlie tinha um sonho de entrar na faculdade de História e
estava noivo a dois anos da sua amada Jennifer, mas as coisas não têm dado
muito certo para ele ultimamente. Estava afundado em dívidas e o seu salário da
livraria mal conseguia pagar o aluguel do seu apartamento, e com a Jennifer as
coisas também não iam nada bem, eles brigavam constantemente por conta da
enrolação de Charlie em relação à organização do casamento, que é uma das
sérias consequências dos problemas financeiros dele.
E naquela mesma manhã, Charlie teve uma discussão feia com
Jennifer por conta de todos esses problemas, as coisas entre eles estavam indo
de mal a pior, e isso estava o angustiando bastante, naquele dia ele não
conseguiu trabalhar direito só pensando nisso.
A pausa para o café com o David foi o momento oportuno para
ele conseguir esfriar um pouco a cabeça, já que em consequência dos problemas
pessoais tomando conta de sua mente ele estava ficando nervoso com o alto
movimento da loja naquele dia, isso sem falar que felizmente as coisas estavam
ficando mais calmas. Era cinco horas da tarde, o fluxo de pessoas estava
ficando menor, faltavam umas duas horas para a loja fechar.
Os dois se sentaram no balcão, Charlie pediu um Cappuccino
normal, e David, um café ao leite. E enquanto eles esperavam suas respectivas
bebidas estarem pronta, Charlie começou a desabafar sobre seus problemas
pessoais, ele estava realmente querendo falar sobre aquilo com alguém, e assim
David se dispôs a ser o ouvido amigo que precisava.
Pouco depois de David falar que aquilo tudo era apenas uma
fase ruim e que mais cedo ou mais tarde as coisas iriam melhorar, e que ele
precisava ser forte, suas bebidas chegaram. A partir dali eles não poderiam
demorar muito já que o pequeno intervalo deles terminaria em quinze minutos.
E após esfriar um pouco seu Cappuccino e dar um primeiro
gole, Charlie se lembrou de uma coisa que estava querendo comentar com David.
- Ei David!
- Fala! – respondeu ele
- Você já ouviu falar de alguma história que diz sobre a
livraria ser... – ele pensou bem se realmente iria falar aquilo, provavelmente
David iria acha-lo doido – assombrada?
David tomou um gole do seu café, e depois respondeu:
- Já ouvi algumas baboseiras do tipo, mas na minha opinião é
tudo história de quem não tem mais o que inventar.
Essa foi à reação que Charlie imaginava que David teria, ele
sabia que ele não levava esse tipo de coisa a sério, diferente dele próprio que
sempre foi fascinado por histórias de terror, sua vida inteira ele tinha como
hobbie pesquisar sobre locais assombrados pelo mundo e suas respectivas histórias,
e vez ou outra gostava de escrever contos de terror, já tentou ganhar a vida
como escritor uma vez, mas sem sucesso.
O que não o impedia de continuar escrevendo, sempre tentava
vender suas histórias, mas ninguém nunca se interessava. Seu outro grande sonho
era virar um escritor de terror renomado, mas cada vez mais pensava menos
nisso, aquele sonho para ele não era mais do que uma mera utopia.
Então Charlie deu um
gole da sua bebida, e falou:
- Cara, é que um dia desse eu estava fazendo uma limpeza em
umas coisas antigas na loja, e ai eu achei um recorte de jornal velho no meio
das coisas.
- O que dizia nele? – perguntou David
- Era uma matéria sobre os locais mais assombrados de
Londres... – falou ele dando mais um gole do seu Cappuccino – e a livraria
estava entre eles.
David prestava atenção sem levar aquilo tudo que Charlie
falava a sério, apenas tomou mais um gole do seu café e continuou escutando.
- Na verdade, não a livraria em si... – continuou Charlie – e
sim o prédio em que ela está.
- Eu tenho uma prima que também se interessa bastante por
esse tipo de assunto, e um pouco antes de eu ser contratado ela me alertou
sobre o local, dizendo pra eu tomar cuidado... – disse David em um tom irônico
– ainda me pergunto com o que.
David deu um grande gole do seu café até Charlie falar.
- Mas você já ouviu as histórias que contam sobre o prédio?
- Não todas, uma ou outra perdida – respondeu David
- Cara, depois de achar esse recorte eu comecei a pesquisar
mais sobre o assunto, até falei com alguns moradores dessas redondezas, e
sinceramente, algumas coisas até fazem sentido.
- Por favor, cara... – suplicou David – isso tudo são apenas
histórias inventadas pelo povo.
- Mas muitas dessas histórias aconteceram de verdade, há até
registros disso.
- Sim, mas nenhuma delas deixou o local com “assombrações”.
- Mas David, não dizem que o “centro das assombrações” é o
último andar?
- Sim! – respondeu ele já um pouco impaciente
- Então, e você também sabe que ninguém tem autorização pra
entrar lá em cima.
- Isso deve ter sido uma medida tomada para afastar os
curiosos.
- Não acredito que seja apenas por isso.
- Charlie, não vai me dizer que você acredita em fantasmas?
- Eu sinceramente acredito, e acho que as pessoas simplesmente
não querem aceitar a existência deles.
- É velho, você definitivamente precisa parar de escrever
aqueles seus contos doidos. – falou David.
Foi então que isso deu uma nova ideia para Charlie, escrever
um conto sobre aquilo, já fazia um tempo que ele não escrevia mais nada.
- Eu definitivamente eu não irei parar, porque afinal de
contas você acabou de me dar uma ótima ideia de conto novo.
David suspirou impacientemente.
- E ainda digo mais... – falou Charlie terminando seu
Cappuccino – eu tentarei entrar no último andar.
No momento em que Charlie falou isso, David quase se engasgou
com os últimos goles do seu café (e por pouco não caia um pouco no seu
uniforme).
- Definitivamente você está doido. – disse David
- Se quiser achar que sim, fique a vontade.
- E como você pretende fazer isso?
Charlie parou pra pensar, realmente não tinha pensado nessa
parte ainda.
- Ainda vou planejar melhor isso, mas você verá.
David riu, e disse:
- E quando você pretende por esse plano de entrar no último
andar em prática?
Charlie pensou bem, e disse:
- Amanhã após o expediente.
E David, certamente, continuava cético.
- Planejarei tudo direitinho hoje à noite.
- Você não acha que tem problemas mais importantes pra se
preocupar, como, as suas dívidas? – questionou David
- Mas vá por mim, isso poderá ser a porta de saída dos meus
problemas, tenho certeza que eu conseguiria vender essa história por um bom
preço, vários iriam se interessar e assim finalmente teria dinheiro o
suficiente para quitar minha dívidas. – falou ele animado.
David ainda rindo, falou:
- Ok, ok, cara, você quem sabe, mas agora vamos voltar ao
trabalho porque a gente já está atrasado. – disse ele se levantando do balcão.
Os dois pagaram suas respectivas bebidas no caixa e assim
retornaram para a livraria.
Enquanto estava na loja, Charlie começou a olhar o local com
mais atenção, o movimento naquela hora já estava basicamente zero e boa parte
das pessoas já estavam indo para suas casas, faltava menos de uma hora para a
livraria encerrar seu expediente, a Srta. Misty já tomava seu chá de fim de
tarde no balcão do caixa, David começava a se arrumar pra pegar o ônibus, e o
zelador cujo-o-nome-ele-não-sabia começava a fazer a limpeza (aliás, zelador
esse que era bastante mal-encarado).
Quando deu sete horas em ponto, todos já estavam prontos para
ir embora, David foi o primeiro a sair, e quando passou por Charlie se despediu
dele e falou pra que ele não ficasse pensando muito naquela conversa fiada de
“assombrações”, e Charlie certamente não deu ouvidos. Pouco depois a Srta.
Misty seguiu caminho até sua casa, depois Roger (que retirava suspiro de todas
as garotas que passavam pela loja com seus olhos azuis) vestiu seu casaco e foi
embora também, até que chegou um momento que os únicos na loja eram Charlie e o
zelador cujo-o-nome-ele-não-sabia.
Charlie deu uma pequena enrolada na livraria na tentativa de
conseguir algum acesso ao último andar, até o dono já tinha ido embora, então
ele aproveitou para dar uma pequena volta pelo prédio à procura de algo que o
chamasse a atenção, mas até certo momento ele não encontrava nada diferente do
normal.
Foi então que as luzes da loja começaram a ser apagadas,
Charlie tomou um susto, mas depois se deu conta que era o zelador
cujo-o-nome-ele-não-sabia que estava desligando tudo para poder fechar a
livraria, mas ainda assim ele continuou a explorar a área. E foi nesse momento
que ele começou a sentir algo estranho, era uma sensação de que tinha alguém
com ele naquele recinto, Charlie olhou a seu redor na espera de encontrar algo
estranho, seu coração começou a acelerar, observou bem todos os cantos do
corredor em que estava, e mais uma vez não encontrou nada, mas mesmo assim seu
medo não diminuía, e lentamente ele foi seguindo seu caminho dentro da loja.
Não demorou muito pra ele achar a escada que dava acesso ao
andar de cima, a mesma estava com uma corrente bloqueando sua passagem com uma
placa escrita.
NÃO ULTRAPASSE: ACESSO RESTRITO
Certamente ele a
ignorou.
Com um pouco de esforço passou por cima das correntes e
começou a subir a escada, a mesma aparentava já ter tido dias melhores, a
madeira estava claramente estragada e havia uns dois degraus quebrados, e
alguns outros que não precisariam de muito esforço pra quebrarem também, e
dessa forma ele foi subindo vagarosamente.
Logo acima ele conseguia observar uma porta logo ao fim da
escada, via-se claramente que quando o prédio foi construído ela não existia
ali, e que foi algo colocado depois, provavelmente após a casa virar uma
livraria. E também se via que a mesma estava muito bem trancada, havia umas
três fechaduras e um cadeado.
Quando Charlie iria se aproximar da porta...
- Ei, você! – Dizia uma voz vinda de trás dele.
Charlie tomou um susto que acabou afundando o pé em um degrau
oco, quando ele olhou para trás, era o zelador cujo-o-nome-ele-não-sabia. Foi
quando se deu conta o quanto ele ignorava a sua existência na loja, porque só
naquele momento que ele se deu o trabalho de olhar melhor as feições faciais
dele.
O velho aparentava ter uns setenta anos e tinha uma cicatriz
logo abaixo do olho esquerdo, mesmo olho em que ele era cego. E havia uma razão
pra que a maioria dos funcionários não gostarem muito da presença dele, ele
trabalhava na loja há uns trinta anos e ninguém nunca o viu sorrir, era como se
tivesse ódio de todos lá dentro. E vez ou outra os funcionários se assustavam
quando o viam olhando fixamente para eles, era como se ele estivesse observando
bem o passo de todos lá dentro e planejando algum tipo de vingança maligna.
- O que está fazendo aqui? – perguntou ele com a sua voz
rabugenta – não sabe que ninguém pode subir essa escada?
Charlie ficou calado olhando fixamente para o velho, estava
com medo, claramente, ele não sabia o que dizer, e o olhar do zelador o
intimidava.
- E-Eu, errrr... – gaguejava Charlie – é que...
- SAIA DAÍ LOGO! – esbravejou o zelador
E assim Charlie desceu as escadas rapidamente, quando ele
passou pelo zelador o mesmo o olhou fixamente, e ele tinha uma sensação de que
mesmo aquele olho cego conseguia observa-lo claramente.
- Agora chega de bisbilhotar coisas que você não deve,
garoto, já está tarde e eu vou fechar a loja. – falou o velho
Charlie apenas concordou com a cabeça com o rosto ainda
assustado, e assim ele foi andando em direção à saída da livraria, ainda
observando o ambiente ao seu redor, e o zelador logo atrás dele, como se
quisesse a garantia de que ele não iria sair bisbilhotando mais nada.
Chegando a porta, ele saiu por ela e o zelador veio logo
atrás, Charlie foi até a calçada e olhou para a porta novamente, e lá estava o
velho o observando mais uma vez. Depois dessa rápida olhada, Charlie ia seguir
seu caminho, até que falou.
- Ei, senhor, só um instante.
O velho que já estava voltando pra dentro da loja se virou e
olhou Charlie fixamente, ainda com aquela cara de que queria que ele fosse
embora logo.
- Desculpe, é que eu trabalho aqui há uns dois meses e até
agora eu não sei o seu nome.
O zelador ainda o olhava fixamente, aquele olhar ainda
assustava Charlie, e depois de alguns segundos calados, ele finalmente falou:
- Dupre!
E sem mais nenhuma palavra ele entrou novamente na loja e
fechou a porta.
“Dupre?” pensou Charlie “esse nome me é familiar.”
Tentava lembrar onde foi que já tinha ouvido aquele nome, mas
não conseguia. E assim ele seguiu seu caminho com essa dúvida e também pensando
“esse cara precisa melhorar os bons modos, não me surpreende o porquê que
ninguém gosta dele.”
A escuridão já tomava conta do céu de Londres, os postes da
Praça Berkeley já estavam todos acesos, e ao longo que Charlie andava ele
voltou a sentir aquela estranha sensação de que alguém o observava.
Olhou a movimentação ao seu redor, o único estabelecimento
ainda aberto era a cafeteria da esquina, em que havia apenas umas quatro
pessoas, e na praça apenas se viam dois vigias e um mendigo deitado no banco.
Ele parou por um instante e olhou novamente pra fachada da
livraria, mais em específico para a janela do último andar, quando mais uma vez
teve a estranha sensação de que alguém o observava. E ele olhava para aquelas
janelas profundamente, e por alguma razão esperava ver alguém ali também o olhando,
e só em pensar nessa possibilidade sentiu um arrepio.
E dessa forma resolveu parar de ficar olhando para ali e
finalmente ir para casa.
Quando chegou em casa já era oito da noite, Jennifer já tinha
chegado do trabalho, ela ainda estava com raiva dele, via-se claramente após
ela responder friamente ao seu “Boa noite, amor”. Passou pela cabeça dele se
sentar com ela e conversar sobre a situação em que os dois estavam, mas ter
mais uma discussão era o que ele menos queria naquele momento, então achou
melhor deixar passar e dar tempo ao tempo.
Jennifer estava no sofá da sala vendo o noticiário da noite,
passava algo sobre algum acidente de trânsito ocorrido no centro de Londres
envolvendo um carro e uma moto, nada que Charlie tenha se interessado em checar
melhor, aliás, estava morrendo de fome. Ele pendurou seu casaco no cabideiro
próximo à porta e seguiu para a cozinha.
Ele esquentou um resto de sopa de macarrão que ainda restava
do jantar do dia anterior e preparou um chocolate quente para si. Após aprontar
o chocolate, se sentou a mesa da cozinha e esperou a sopa ficar pronta no
micro-ondas, esfriou um pouco a sua bebida e tomou um primeiro gole, percebendo
assim que não tinha esfriado o suficiente ao queimar a língua.
Pouco depois, o sinal do micro-ondas tocou e ele pegou sua
sopa, novamente se sentou e esperou um pouco que ela esfriasse. Enquanto isso,
observava Jennifer no sofá da sala focada no noticiário da noite que passava, e
por um instante ele pensou em falar para ela sobre as coisas que tinha
descoberto sobre a livraria, e também da sua ideia de escrever um conto sobre
aquilo e entrar no último andar da mesma.
Mas Jennifer nesse ponto se parecia um pouco com David, ela
não levava esses tipos de história a sério, e achava baboseira o fato de
Charlie perder seu tempo com essas coisas, e da mesma forma também não gostava
dos contos que ele escrevia (ela em si nunca foi fã de histórias de terror).
Então ele tirou essa ideia da cabeça, provavelmente só causaria mais uma discussão
entre eles dois, o que tentava evitar ao máximo.
E dessa forma, Charlie apenas comeu seu jantar tranquilamente
sem falar mais nada, enquanto Jennifer continuava na sala vendo televisão e
tomando seu chá.
E pelo resto daquela noite Charlie pensava em apenas duas
coisas, da quão chata estava a sua situação com Jennifer naquele dia, e do seu
plano para entrar no último andar da livraria no dia seguinte. Naquela noite os
dois dormiram na mesma cama, mas sem conseguir olhar para cara um do outro.
Na manhã seguinte quando Charlie levantou da cama, Jennifer
já estava acordada. O dia em Londres amanheceu nublado, e a previsão do tempo
indicava que uma grande chuva cairia pela parte da tarde. Charlie desceu pra
cozinha e viu Jennifer preparando a mesa.
- Bom dia, amor! – falou ela indo em sua direção
- Bom dia, Jen! – respondeu ele sentindo-se satisfeito em ver
que ela não estava mais com raiva dele, mas ainda assim Charlie via que Jen não
estava bem, parecia preocupada com alguma coisa.
Os dois deram um selinho um no outro, e Jennifer falou:
- Preparei o café pra gente hoje.
- Oh amor, não precisava... – falou Charlie
- Precisava sim... – suplicou Jen – eu não queria que as
coisas continuassem chatas entre a gente – disse ela – entenda como um pedido
de desculpas.
Charlie pensou em questionar, mas achou melhor ficar calado,
ele também queria muito que as coisas entre eles dois ficassem bem, então se
sentou a mesa enquanto Jen colocava o resto da comida.
Ela tinha preparado algumas panquecas com mel, alguns bacons,
duas torradas e um chocolate quente para Charlie. Após por a mesa ela se sentou
junto a Charlie e se serviu, e assim ele fez o mesmo.
Então os dois começaram a conversar sobre como tinha sido o
dia anterior para eles, o que tinha acontecido, e todo o resto. E ao longo que
eles conversavam Charlie não deixava de perceber a expressão de preocupada que
a Jen estava, até que um momento ele não resistiu e perguntou.
- Jen, posso lhe perguntar uma coisa?
Ela estranhou a pergunta:
- Pode... – disse ela
- Está tudo bem?
Surpresa com a pergunta, ela respondeu:
- Está, claro, por que não estaria?
- Porque você parece que está preocupada com algo... – disse
Charlie – ou é só impressão minha?
Ela ficou calada por um instante, e falou:
- Deve ser só impressão mesmo.
Charlie não tinha engolido aquilo, mas resolveu aceitar sem
questionar.
Então ele olhou a hora e disse:
- Bom, hora da gente se arrumar e ir para o trabalho.
Ela concordou.
Eles terminaram de comer, lavaram seus respectivos pratos e
subiram pra se arrumar.
Não demorou muito para os dois estarem prontos, desceram do
quarto juntos, cada um pegou um guarda-chuva e seus respectivos casacos no
cabideiro e saíram de casa. Chegando um pouco além da esquina, era a hora em
que cada um iria seguir seu caminho, Charlie iria pegar o ônibus para a
livraria e Jennifer iria andando a farmácia onde trabalhava.
Eles pararam para se despedir, se beijaram e Charlie avisou
que iria chegar um pouco tarde em casa (ainda sem dizer o porquê). Jennifer
pareceu receosa, mas não fez mais perguntas, cada um disse “eu te amo” para o
outro e seguiram seus respectivos caminhos.
Até que...
- Charlie! – gritou Jen
Que correu em sua direção, e quando ele se virou ela o
abraçou fortemente quase chorando. Charlie ficou perplexo, a última vez que
Jennifer a tinha o abraçado daquela forma foi quando eles reataram o relacionamento
após dois meses separados.
- Jen, você tá bem? – perguntou ele mais uma vez
- Estou... – respondeu ela enxugando o rosto – é besteira,
sério.
- Não é o que está parecendo.
Jen soluçou, deu uma suspirada e falou:
- Foi... só... – ela pensava bem se queria realmente falar
aquilo – um sonho doido que eu tive.
- Quer me falar sobre ele?
- Não... sinceramente... você vai achar loucura.
- Essa é uma característica dos sonhos, normalmente.
- Sério... não vale a pena... relembrar.
- Eu estava nesse sonho?
Ela concordou com a cabeça.
- Algo acontecia comigo?
Ela afirmou com a cabeça de novo.
- Não quero entrar em detalhes... – disse Jen – mas só digo
que acontecia uma coisa que faria eu nunca mais te ver de novo.
Jennifer se esforçava pra não chorar.
Foi então que Charlie a abraçou de novo e disse:
- Vai ficar tudo bem.
E depois de alguns segundos abraçados, Jennifer falou:
- Não demora muito pra chegar em casa, tá?
- Tá certo, prometo que não demorarei. – falou Charlie sem
ter certeza de que estava falando a verdade.
- E quando eu chegar... – continuou ele – você vai me contar
esse sonho com todos os detalhes, tá certo?
Ela concordou com a cabeça.
E assim eles deram um último abraço antes de irem.
- Eu te amo Charlie, não se esquece, tá? – falou Jen.
- Também te amo, Jen, não esquecerei.
Após mais alguns segundos abraçados, eles deram um longo
beijo, e depois finalmente seguiram seus caminhos.
Charlie ficou preocupado com Jennifer, ele queria muito saber
o que tinha acontecido com ele nesse sonho, mas tentou tirar isso um pouco da
cabeça pra se focar em duas coisas, no dia de trabalho e em como conseguiria
entrar no andar proibido da livraria.
Pouco após ele descer do ônibus, uma forte chuva começou a
cair sobre Londres, Charlie abriu seu guarda-chuva e seguiu caminho até a Praça
Berkeley. Após uns quinze minutos da parada até a praça, Charlie já avistava o
prédio nº 50, que naquele dia chuvoso parecia muito mais tenebroso que o normal
e muito menos convidativo também.
E mais uma vez ao olhar pra janelas do último andar, Charlie
sentia a sensação de que tinha alguém olhando para ele dali, então por um
instante ele parou e olhou fixamente para o prédio, seus sapatos estavam
encharcados por conta das poças d’água que ele acabou pisando no caminho até a
praça, assim como as bocas da sua calça também estavam. Mas ainda assim ele
parou na calçado e encarou o prédio, como se assim conseguisse ver mais
profundamente os seus mistérios.
Até que de repente ele ouviu:
- Charlie?
Ele olhou para trás, era David.
- Tá fazendo o que ai parado?
Sem saber o que falar, mas também sem querer falar a verdade,
Charlie pensou por alguns segundos em alguma boa desculpa, e disse:
- Só me certificando se não esqueci nada em casa.
David olhou pra Charlie com aquela cara de quem não engoliu
aquela desculpa.
- Ok então, né? – falou David
E após ficarem alguns segundos encarando uma ao outro debaixo
da chuva, David disse:
- Vamos entrar né? Acho que já nos molhamos o suficiente por
hoje.
Charlie concordou sem dizer mais nada, e o acompanhou até a
porta da livraria, que abriria em mais ou menos meia-hora.
Ao entrar na loja, os dois guardaram seus guarda-chuvas no
porta guarda-chuva logo ao lado da porta e penduraram seus casacos. Logo atrás
do caixa, no seu lugar de sempre, estava Srta. Misty tomando seu chocolate
quente antes do início do expediente, ela deu bom dia tanto pra Charlie quando
pra David e os dois responderam educadamente.
Pouco depois ele passaram pelo zelador, Dupre, era o seu
nome, Charlie se lembrava bem agora, aliás, ele ainda queria descobrir onde já
tinha visto aquele nome, não conseguia lembrar. Ao passar por ele, David o
desejou “bom dia”, e o mesmo retribuiu da mesma forma rabugenta de sempre, já
Charlie preferiu ficar calado ao passar por ele e apenas o encarar.
Dupre o encarou de volta, certamente iria ficar de olho em
Charlie constantemente depois da noite anterior, Charlie não gostava dele e
estava claro que o sentimento era recíproco da parte do velho. O zelador o
encarou de volta, ainda havia aquela sensação de que seu olho esquerdo o
observava melhor do que o direito, mesmo sendo cego.
Nesse momento Charlie percebeu que teria que tomar bastante
cuidado com o zelador daqui pra frente, certamente seu nome estava na lista
negra dele desde a noite passada.
Naquele dia o movimento na loja foi baixo, uma das
consequências da forte chuva que atingiu a cidade, certamente as pessoas
preferiram deixar pra comprar qualquer coisa lá para o dia seguinte do que
enfrentar aquele pé d’água.
A chuva apenas deu uma trégua em um curto período da tarde,
mais ou menos por uma hora e meia, até ela voltar a cair com força total.
Era um daqueles dias em que todos na loja se perguntavam o
porquê deles não terem ficado em casa, David desde o início da tarde não fazia
mais nada que não fosse ficar jogando no seu celular, Roger ficou sentando em
um canto com o rádio no ouvido na expectativa para o jogo do Chealsea, seu time
do coração.
Mas enquanto todos se distraíam com alguma coisa, Charlie
resolveu explorar um pouco mais a livraria, ainda pensava bem no seu plano de
entrar no último andar. Primeiramente ele precisava descobrir onde era a sala
do Dupre, porque lá seria o único lugar onde a chave do andar estaria, e
provavelmente bem protegida dentro de um cofre. Uma coisa Charlie tinha certeza,
a tarefa seria complicada.
Enquanto ele procurava a sala, simultaneamente também
pesquisava um pouco mais sobre a história do prédio pelo celular, não achava
muitas novidades, apenas aquilo que já tinha visto antes. Ele queria algum
relato atual de alguma pessoa que tivesse presenciado algum fenômeno estranho
no local, ou então registros, mas não obteve sucesso nessa busca.
Até que em um momento, ele viu Dupre perambulando pelos
corredores da loja, na hora o zelador estava com o espanador tirando a poeira
de cima dos livros e dos móveis. Então Charlie resolveu acompanhar o passo-a-passo
do serviço do Dupre até o momento que ele fosse para a sua sala, e claro, sendo
o mais discreto possível.
Até o Dupre terminar de espanar todas as estantes, Charlie não
tirou os olhos dele. E observando ele trabalhar que Charlie aumentava mais a
sua teoria de que o zelador conseguia observar melhor com o olho cedo, era como
se o mesmo conseguisse ver coisas que ninguém conseguiria a olho nu, e aquilo
fazia Charlie ter cada vez mais medo do velho.
E finalmente o velho foi para a sua sala, Charlie continuava
na sua cola, fazia uns vinte minutos que ele estava nessa brincadeira, e já
estava ficando cansativo. E assim ele seguiu Dupre até a sua sala, que ficava
onde era supostamente o porão do prédio, foi quando Charlie se deu conta que
era ali onde ele morava, e se lembrou também que nunca viu o zelador saindo da
livraria após o fim do expediente, ou seja, ele nunca se importou com aquele
velho rabugento.
O zelador ficou apenas alguns segundos dentro da sua sala e
saiu com uma sacola para coletar os lixos das lixeiras.
A porta não tinha sido trancada, então por isso Charlie
estava decidido a entrar lá, para quem sabe já achar onde a chave do último
andar estava, mas quando ele estava indo em direção à porta, uma senhora o
cutucou. Era uma cliente que procurava por algum livro específico de física
quântica, e por isso ele teve que deixar a ideia de entrar na sala do zelador
para alguma outra hora e foi procurar o livro para a mulher.
Não muito depois disso, ele avistou o Dupre voltando pro seu
recinto, provavelmente tinha esquecido algo, mas de qualquer forma foi melhor
ele não ter entrado lá naquele momento, com certeza teria arrumado mais
problemas com o velho do que já tinha.
Dessa forma mais um dia de expediente se passou na livraria e
nas redondezas da Praça Berkeley, que para todos passou de forma vagarosa, o
movimento à tarde foi menor do que o da manhã, tudo ainda consequência da forte
chuva que atingiu a cidade naquele dia (que ainda caia a noite de forma
violenta).
Para Charlie, a hora de por seu plano em prática estava cada
vez mais próxima, ele contou isso para David e o mesmo não o levou a sério, pra
variar, mas ele não ligou para isso.
David foi o primeiro a ir embora, ele estava bastante
apressado para chegar em casa, principalmente por causa da tempestade que caía.
A Srta. Misty saiu logo após quando seu noivo chegou para busca-la, era
sexta-feira a noite, e mesmo com a chuva, eles tentariam aproveita-la juntos.
E aos poucos todos foram deixando a loja, até que mais uma
vez sobrou apenas ele e o rabugento do Dupre.
Era hora de por o plano em prática, ele já tinha em mente o
que precisava fazer, tinha que, em primeiro lugar, distrair o Dupre de alguma
forma por um longo período de tempo, e após isso seria apenas ele entrar na
sala dele e achar a chave, e felizmente o velho nunca a trancava.
As luzes da loja estavam sendo apagadas quando Charlie
começou a agir, e no mesmo momento um forte relâmpago iluminou o céu chuvoso de
Londres vindo junto de um grande trovão.
Foi quando Charlie percebeu que era a hora de entrar em ação,
e assim o fez, inundando o banheiro da loja. Não demorou muito pra velho
zelador morder a isca, provavelmente depois de ouvir o som de água corrente,
ele correu em direção ao banheiro gritando “QUEM ESTÁ AI?”.
Charlie ficou de tocaia por trás das estantes nas
proximidades do banheiro. Quando Dupre viu o tamanho do estrago deu um urro de
raiva, no mesmo instante outro relâmpago iluminou o recinto acompanhado do som
de um trovão. Aquilo assustou Charlie profundamente.
O velho correu em direção a sua sala soltando todos os tipos
de xingamentos possíveis, e logo após voltou com um esfregão na mão, ainda
resmungando.
“Se eu descobrir quem fez essa merda, eu mato o filho da
puta” xingava Dupre começando a arrumar a bagunça.
Era a chance que Charlie precisava, o velho rabugento iria
levar um tempo até arrumar tudo, e assim ele foi em direção à porta do porão.
Ele andava o mais silenciosamente possível, tomava cuidado a cada passo que
dava, e a escuridão da loja não o ajudava em nada, passava por sua cabeça a
possibilidade de pisar em algo que o denunciasse, e isso o deixava nervoso. Mas
tentava não pensar nisso e seguir o plano.
E ao longo que o tempo passava parecia que a tempestade só
piorava, relâmpagos caiam de minuto em minuto, juntamente com os trovões, e
isso assustava cada vez mais Charlie.
Mas quando finalmente avistou a porta do porão (uns dez
minutos depois), ele tomou outro susto. Além de mais um relâmpago ter caído,
seu celular vibrou no bolso, era algum SMS recebido.
“Ainda bem que eu me lembrei de colocar no silencioso, senão
eu estava fodido.” Pensou ele.
Era uma mensagem da Jennifer, provavelmente preocupada porque
Charlie não tinha chegado em casa ainda, e além do mais por causa da
tempestade.
“Cadê você?” dizia a mensagem.
“Estou na livraria ainda...” respondeu Charlie “logo estarei
em casa, não se preocupe.” Mandou ele com uma carinha sorrindo do lado.
Alguns segundos depois, Jen respondeu:
“Não demora muito não, tá?”
“Não demorarei.” Respondeu ele no mesmo instante.
“Promete?”
“Prometo”
E depois de alguns segundos, Jennifer mandou:
“Eu te amo!”
“Também te amo” respondeu Charlie
E antes de guardar o celular de volta no bolso, ele reparou
que restava apenas quinze por cento da bateria.
“Isso vai dar merda.” Pensou ele guardando o celular.
Feito isso ele finalmente entrou na sala do Dupre (que de
novo, não estava trancada).
Vagarosamente ele entrou e observou com atenção o local. Ele
concluiu antes de tudo que o velho realmente morava ali, havia uma cama, um
pequeno fogão, um pequeno frigobar, e várias outras coisas básicas pra uma
pessoa poder morar em um local.
Logo a direita da porta ele encontrou onde o Dupre deixava
todas as chaves do prédio, cada uma ficava pendurada em um prego na parede com
o nome do local em que pertencia logo abaixo. O único que se encontrava vazio
era a chave da entrada da livraria, que provavelmente estava na mão do velho naquele
momento.
E para a surpresa de Charlie, junto a elas também estava a
chave do último andar.
“Como assim ela não é mantida em um cofre?” pensou ele.
Aliás, se aquela era a chave do local que ninguém era
autorizado a entrar faria mais sentido que ela estivesse protegida a sete
chaves.
Mas logo tirou isso de mente, ele tinha conseguido a chave,
era o que importava. Então a pegou, e depois de sair da sala e fechar a porta
de forma cuidadosa pra não batê-la, foi em direção da escada com a mesma
cautela.
No caminho ele ainda ouvia a água corrente do banheiro e o
velho Dupre ainda resmungando.
Até que ele finalmente chegou à velha escada de madeira, o
aviso de “não ultrapassar” ainda estava lá, e mais uma vez Charlie não deu a
mínima importância para ele. Cuidadosamente foi subindo degrau por degrau,
tomando cuidado com aqueles que estavam ocos e principalmente com aquele que
ele tinha quebrado na noite anterior. E a cada passo que dava ele olhava para
trás para garantir que o Dupre não estaria vindo estragar seus planos.
Chegando próximo à porta ele preparou as chaves em mãos.
Acendeu a lanterna do celular (que no momento se encontrava com apenas oito por
cento da bateria) e foi procurando encaixar as chaves nas suas respectivas
fechaduras.
Começou com o cadeado, que foi o mais simples, abriu-o sem
muitas dificuldades, logo após ele foi para a segunda fechadura que era do tipo
mais redonda, posicionou bem a chave na mão e a colocou. Levou um susto quando
deu o primeiro giro, por causa do trovão que tinha caído simultaneamente,
respirou fundo e deu o segundo giro que fez um grande estrondo, o assustando
mais uma vez e fazendo-o olhar para trás.
Esperou alguns segundos calados por qualquer sinal do
zelador, tendo a certeza de que ele não ouviu, Charlie voltou a se focar na porta,
deu a terceira e última rodada na chave que fez mais um estrondo, fazendo com
que Charlie tivesse que esperar mais alguns segundos para ter certeza de que o
velho não ouviu.
Após ter certeza disso e verificar que aquela fechadura já
estava completamente aberta, ele foi para a última chave, que era a da porta em
si. Com a mão tremendo e a lanterna do celular também, ele colocou a chave na
fechadura, quando tentou girá-la, a chave emperrou.
Aquilo deixou Charlie mais nervoso do que já estava, ele deu
uma segunda tentativa, sem sucesso, então soltou a chave, deu uma suspirada, e
tentou de novo, ainda emperrada, e o seu desespero aumentava.
- Maldita chave velha! – falou baixo para ele mesmo
Deu uma terceira tentativa que também não obteve sucesso.
Até que na quarta, um pouco no desespero, ele conseguiu dar a
primeira girada na fechadura. E com um pouco de mais calma, ele deu a segunda,
e finalmente a porta foi aberta.
Charlie deu um suspiro de alívio, e calmamente desligou a
lanterna do celular, o guardou e bem devagar abriu a porta do tão temido andar.
Ele estava prestes a presenciar na pele um pouco da história
macabra daquele antigo prédio das redondezas da Praça Berkeley.
E assim, lentamente ele entrou no recinto, pegou novamente o
celular do bolso e ligou a lanterna. Começou a observar os arredores com
atenção, aquele lugar realmente daria um bom cenário de filme de terror, havia
teias de aranhas em todos os cantos do local, tinha poeira por todas as paredes
e por todo o chão, e via-se não muito distante algumas baratas andando pelo
local.
Com cuidado, Charlie foi caminhando com a lanterna acesa
vendo o que mais poderia encontrar por ali. Ele tinha deixado a porta aberta,
mas não chegou a reparar nisso.
Em uma das paredes ele viu o retrato antigo de uma família,
alguma que provavelmente tinha morado ali há muito tempo atrás, e quando
reparou melhor viu que um dos membros estava com uma camisa de força,
provavelmente era o homem louco que foi mantido preso ali pelo irmão.
Mais a frente naquele corredor, Charlie avistou três portas
logo ao final dele. Uma delas parecia algo que um dia chegou a ser um banheiro,
sendo que sem o vaso sanitário, com a pia parcialmente destruída e lodo
impregnado em todos os lados, isso sem falar em um rato que agora habitava a banheira
também cheia de lodo.
Na outro parecia ser um quarto de casal empoeirado e com o
colchão e os travesseiros estragados e devorados pelas traças, e a última porta
estava fechada, e por isso que Charlie sabia que aquele deveria ser o quarto
que é o centro de todas as assombrações do prédio.
E assim foi em direção da porta, ainda com o celular em mãos
utilizando os últimos cinco por centos de bateria que ainda restava, ao passar
pelas outras duas portas deu uma leve olhada no lado de dentro, vendo a situação
dos respectivos cômodos, e sentindo nojo principalmente do banheiro.
Ao longo que andava por aquele corredor, ele voltava a ter
aquela sensação estranha, não de que alguém o observava dessa vez, e sim de que
tinha alguém com ele ali naquele momento, alguma presença estranha, que nem ele
mesmo conseguia explicar. Seu coração disparava a cada passo que dava, aquele
local o assustava até os ossos, tanto que sentiu um arrepio após mais um
relâmpago iluminar o céu londrino.
Até que finalmente estava em frente da porta fechada, observou-a
com atenção e viu uma abertura especial que ela tinha na parte de baixo, o que
confirmava que aquele era o tão temido quarto.
Ele estendeu a mão para abri-la, mas quando tocou a maçaneta
se assustou com um som que veio de trás dele, ele recuou e apontou a lanterna
para o corredor. Esperava ver o velho Dupre logo atrás dele, mas felizmente não
era. Era apenas um rato que tinha saído do banheiro, Charlie respirou aliviado.
Ele voltou a se focar na porta, vagarosamente tocou na sua maçaneta
e a girou. A porta de abriu a sua frente, e assim ele viu um grande cômodo sujo
e vazio, tirando por um simples detalhe, havia um esqueleto humano deitado ali.
Quando Charlie viu o esqueleto, mais um relâmpago caiu e a
sua lanterna do celular desligou sozinha, sua bateria tinha acabado de morrer.
“Mas que merda, hein?” pensou ele guardando o celular no
bolso.
E mesmo com pouca visibilidade ele entrou no quarto, além do
esqueleto também havia uma cadeira velha encostada na parede e uma camisa de
força estragada, havia algumas marcas no chão que diziam claramente de que já
houve outros móveis ali, mas que foram tirados há muito tempo.
Aquele quarto causava arrepios em Charlie, enquanto ele dava
uma olhada geral no local, lembrava-se de todas as histórias que leu na
internet sobre as coisas que teriam acontecido ali, seu coração batia cada vez
mais rápido, e os relâmpagos que caiam apenas pioravam a sua situação.
E após mais um deles, ele teve a impressão de ter visto um
vulto passando pelo quarto, seu coração quase saiu pela boca. Ele viu a única
janela que tinha no cômodo, ela estava completamente bloqueada por tábuas de
madeiras lá colocadas, o único meio de ver algo do lado de fora através delas era
por alguns buracos que havia entre uma tábua e outra.
Quanto mais tempo ele passava dentro daquele local, mais
rapidamente sua sanidade ia embora, foi então que ele pensou:
“Ok, acho que já vi o suficiente, hora de ir embora.”
Agora era ir pra casa e começar a buscar inspiração para
escrever o conto que ele queria, ele saiu do quarto e deixou a porta aberta,
agora que não tinha mais uma lanterna em mãos, teve que tomar cuidado enquanto
andava, a visibilidade era muito pouca, e a única ajuda que ele tinha em
relação a isso era quando caia algum relâmpago.
Mas de qualquer forma, ela via claramente a porta que ele
tinha entrado entreaberta, procurou as chaves no bolso, mas lembrou de que
tinha deixado às mesmas penduradas na porta, então simplesmente andou em
direção dela.
Até que viu a porta se fechando diante dos seus olhos, quando
isso aconteceu, Charlie correu desesperadamente na tentativa de impedir que ela
se fechasse por completo, mas não obteve sucesso, ouviu-se a porta bater e
depois alguém a trancando.
Charlie chegou perto da porta e começou a tentar abri-la,
quando ouviu alguém fechando o cadeado dela no lado de fora, ele entrou em
desespero, começou a tentar abrir de todas as formas possíveis, começou a
esmurra-la, chuta-la e se jogar contra a ela na esperança de arrombar a tranca.
- SOCORRO, ALGUÉM ABRE A PORTA, POR FAVOR! - gritava ele
Foi então que ele se lembrou de que o único que estava na
loja naquele momento era o velho Dupre, provavelmente ele tinha terminado de
limpar o banheiro e tinha subido pra fechar a porta do último andar.
Provavelmente o velho sabia que ele tinha pego a chave na
sala dele, provavelmente ele sabia que Charlie estava lá dentro, e
provavelmente o maldito zelador queria que isso tivesse acontecido.
- DUPRE, SEU VELHO DESGRAÇADO, ABRA A PORTA SEU FILHO DA
PUTA!
Charlie gritava inutilmente, porque ele sabia bem que mesmo
que aquele velho maldito o ouvisse, ele não iria ajuda-lo.
O desespero tomou conta de Charlie, ele tentava arrombar a
porta de todas as formas, mas ela parecia ser bem resistente para uma porta um
tanto antiga, e aos poucos foi desistindo quando via que não tinha mais jeito,
e que estava definitivamente preso ali.
Lentamente, Charlie se sentou próximo a porta ainda com uma
feição de desespero no rosto.
“Calma Charlie, alguém virar por você, mais cedo ou mais
tarde.” Pensou ele.
Talvez não naquela noite, mas pelo menos no dia seguinte,
pensava ele, Jennifer vai reparar na falta dele, e a livraria iria abrir
naquele sábado, o pessoal iria reparar que ele não estaria no trabalho,
possivelmente iriam falar com a Jennifer, ela iria dizer que ele não tinha ido
pra casa na noite anterior e iriam procura-lo.
E qualquer coisa, eles falariam com David, ele sabia que
Charlie iria tentar entrar no último andar, ele contaria isso para os outros,
ou seja, não haveria motivo para pânico, não demorariam para encontra-lo lá em
cima, seu emprego estava em risco por conta disso, mas isso era uma coisa que iria
se preocupar depois.
Ou seja, possivelmente Charlie só ficaria aquela noite ali,
ele aguentaria tranquilamente.
Ele tentava respirar fundo e se acalmar, só precisaria de
paciência, queria poder falar com a Jen, mas a bateria do seu celular já tinha
acabado.
“Porque eu nunca me lembro de carregar essa merda nas horas
certas?” pensou ele.
Então Charlie se levantou, e aos poucos tentou se guiar pela
escuridão no local, a chuva ainda caia forte, alguns relâmpagos ainda o
auxiliavam na iluminação vez ou outra, ele andava vagarosamente com medo de
tropeçar em alguma coisa.
E assim ele voltou ao quarto que tinha um esqueleto deitado
no chão, sempre que ele olhava para o mesmo sentia um forte calafrio.
Perguntava-se do porque aquele pobre coitado acabara ali, esquecido pelo mundo
e ninguém que procurasse seus restos mortais para um enterro digno.
Perguntava-se quem era ele e o que foi fazer lá, será que era
algum outro curioso tipo ele próprio que foi se aventurar onde não devia?
Depois de se perguntar tudo isso, ele virou sua atenção pra
janela bloqueada, foi na direção dela na esperança de achar alguém passando
pela praça naquela hora, o que era difícil por causa daquela forte chuva, mas
Charlie precisava ter esperanças, e esperança era tudo que o restava naquele
momento de desespero.
Olhou pelo pequeno buraco entre as tábuas de madeira, sua
visão já era bem limitada, e com aquela chuva apenas piorava, se alguém passava
pela praça naquele momento era difícil ver. Charlie tentou inutilmente tirar as
tábuas da janela, mas elas estavam muito bem pregadas.
E nessa mesma hora Charlie observou um detalhe interessante daquelas
tábuas, elas pareciam novas, assim como os pregos nelas, e ele se lembra delas
sempre estarem lá quando ele olhava para a janela do último andar do lado de
fora do prédio, elas sempre estiveram ali desde quando ele começou a trabalhar
na livraria, e por incrível que pareça a madeira não aparentava ser velha, tão
pouco o metal dos pregos. Era como se alguém tivesse colocado aquilo ali
recentemente.
Por um instante passou pela cabeça de Charlie a possibilidade
do velho Dupre ter colocado aquilo ali pouco antes dele entrar lá, como se
aquele velho maldito já tivesse planejado isso tudo. A ideia parecia ser um
pouco viajada, mas Charlie não ficaria surpreso se fosse verdade, aquele cara
simplesmente não era normal.
Charlie ainda tentava ver alguma coisa, ele tinha a impressão
de que aquela chuva não iria parar nunca, foi então que ele gritou:
- SOCORRO, ALGUÉM? – ele tinha a esperança de que alguém do
lado de fora ouvisse
- ALGUÉM ME AJUDA, ESTOU PRESO AQUI, SOCORRO!
Charlie gritava desesperadamente, nunca gritara tão alto na
vida quanto agora, mas parecia que por mais alto que ele gritasse ainda assim
não adiantava de nada, ninguém parecia ouvir.
Não havia nenhum sinal de que alguém tinha ouvido, ou ao
menos se importado com o que acontecia ali, Charlie não via sinal de
movimentação nem mesmo vindo dos vigias que provavelmente estariam na praça.
“Não é possível, alguém deve ter ouvido.” Pensava ele.
E com a garganta já doendo, ele se sentou próximo à janela,
estava com fome e com sede, pensava na Jen que provavelmente estava preocupada
com ele, tudo que queria naquele momento era voltar para casa. E ao mesmo tempo
sentia raiva do velho Dupre, e assim jurava por todos os deuses existentes que
encheria o maldito de porrada quando conseguisse sair dali.
Várias coisas se passavam por sua cabeça naquele momento, ele
se sentia cansado, não fazia a menor ideia de que hora era, não tinha um
relógio e não podia contar com o seu celular.
Mas de uma coisa tinha certeza, estava muito tarde, então
decidiu que iria tentar dormir um pouco. Aquele chão não era nem um pouco
confortável, isso sem falar que estava bastante sujo, mas mesmo assim Charlie
se deitou nele, aliás, que outra opção ele tinha?
Assim ele se deitou, com esperanças de que quando acordasse
na manhã seguinte alguém apareceria para tira-lo de lá, estava cansado, mas não
estava com sono, enquanto estava deitado tentava não olhar para o esqueleto que
estava ao seu lado, e nas poucas vezes que arriscou olhar ele tinha a estranha
sensação de que a caveira dele o olhava profundamente, e quando algum relâmpago
caia apenas aumentava essa sensação.
Aos poucos a chuva finalmente foi parando, e dessa forma
Charlie tentou dar mais uma espiada pelos pequenos buracos entre as tábuas da
janela. Pelo pouco que conseguia enxergar ele não via mais nenhuma alma penada
pela praça, por um instante pensou em gritar novamente, mas estava cansado
demais para isso.
Voltou a se deitar e fechou os olhos na tentativa de pegar no
sono, mas enquanto tentava ele ouviu um som vindo de dentro do quarto, no mesmo
instante se levantou e olhou para todos os lados de forma assustada. Era o som
de alguma coisa que entrara rapidamente no cômodo, Charlie procurava o que
poderia ter sido, e após olhar várias vezes ele viu que era apenas um rato, um
rato bem feio para ser mais exato.
Mesmo achando a fonte do tal som ele não ficou mais
tranquilo, aquele rato não parecia nem um pouco amigável, e pensou até na
possibilidade daquela criatura fazer algo com ele enquanto dormia.
A cada minuto que passava Charlie sentia mais medo, era como
se aquele local sugasse aos poucos a sanidade da pessoa.
Ele voltou a se deitar, ainda olhava atentamente para o rato,
torcia para que aquela coisa saísse dali logo, e enquanto não o fizesse não conseguiria
dormir.
E logo depois se assustou com outro som, dessa vez era o
vento forte que batia nas tábuas da janela, a cada sopro as madeiras balançavam
violentamente.
Charlie já não tinha mais esperanças de que conseguiria
dormir, estava muito assustado para isso, o maldito rato o encarava ao lado do
esqueleto-que-ali-jazia. Nessa hora ele começou a fazer algo que não fazia há
muito tempo: Rezar.
Charlie nunca foi muito religioso, não era muito de rezar,
apenas em situações desesperadoras, tipo aquela. E enquanto rezava ele ouviu o
choro de um bebê, não fazia a menor ideia de onde vinha, mas pra ele não fazia
diferença, aquilo apenas piorava a sua situação.
Depois de cinco minutos o rato finalmente deixou o quarto,
mas ainda assim Charlie não ficou tranquilo, isso porque ele sabia que o
maldito voltaria em algum momento. Ele se concentrava na tentativa de dormir,
queria muito conseguir dormir, queria muito acordar daquele pesadelo, queria
muito que aquilo fosse apenas um pesadelo, mas não era, aquilo era bastante
real.
Tentava ignorar todos os sons que ouvia, além do choro de
bebê ele também ouviu um grito de uma mulher vindo de longe, mas ele apenas
fechou os olhos tentando ignorar aquilo tudo.
E depois de quase uma hora, Charlie finalmente conseguiu
pegar no sono.
Na manhã seguinte, Charlie acordou com o calor de um fino
raio solar que batia em seu rosto, um dos poucos que conseguia passar pelas
tábuas da janela. Ele acordou assustado, tinha tido um sonho estranho, nele,
estava no maldito quarto observando um homem preso na camisa de força, se
contorcendo na esperança de se soltar, esse homem gritava desesperadamente, ele
batia a cabeça na parede várias vezes a ponto de sangrar, via-se a loucura em
seus olhos.
Próximo à porta havia um prato vazio, foi quando Charlie viu
uma pequena abertura nela, onde provavelmente passou aquele prato de comida.
“CALA BOCA SEU RETARDADO DE MERDA!” gritou uma voz familiar
vindo do outro lado da porta.
E assim o homem-na-camisa-de-força gritou mais alto ainda,
como se tivesse querendo provocar seja lá quem fosse.
“NÃO ME FAÇA IR AI TE DAR UMA SURRA!” gritou o homem no outro
lado da porta.
E mais uma vez o homem-na-camisa-de-força gritou.
“VOCÊ QUE PEDIU!” vociferou o homem.
Charlie viu a porta sendo aberta, quando ele ia ver o rosto
do cara que gritava do outro lado da porta, ele acordou.
Estava na esperança de acordar no conforto da sua casa, como
se aquilo tudo tivesse sido apenas um pesadelo doido, mas quando se deu conta
de que ainda estava dentro daquele maldito quarto, do lado daquele esqueleto
humano que parecia o encarar, se sentiu desesperado mais uma vez.
Não fazia ideia de que horas eram, se fosse chutar diria que
era oito e meia da manhã, mas não tinha como confirmar, na situação em que ele
estava, não fazia a menor diferença se fossem oito, nove, dez, meio-dia ou
meia-noite, daria tudo no mesmo.
Levantou-se e tentou olhar mais uma vez pelas brechas da
janela, mesmo com a pouca visibilidade se percebia um pequeno movimento na
Praça Berkeley.
- SOCORRO! – gritava ele na esperança de alguém ouvir – ESTOU
PRESO AQUI, ALGUÉM ME AJUDA.
Fez silêncio por um instante na esperança de alguém responder
aos seus gritos.
- O MALDITO ZELADOR ME PRENDEU AQUI, ME AJUDEM, POR FAVOR.
Ainda assim não havia resposta.
“Não é possível, estou quase me esgoelando aqui, e ainda
assim ninguém me ouviu?” pensou ele.
Voltou a gritar, e juntamente esmurrava as tábuas da janela,
talvez daquela forma ele até conseguisse quebrar aquela madeira maldita, mas
nada adiantava, nem parecia que alguém estava o ouvindo e tão pouco chegara a
rachar as tábuas.
Sentia-se desgastado, com fome e com sede, e com raiva deu um
soco nas tábuas da janela, sentiu a mão doer, mas tentou ignorar ao máximo.
Charlie olhou para a porta do quarto e começou a lembrar do
sonho que teve, ele queria ter visto o rosto do
homem-que-gritava-no-outro-lado-da-porta, a voz lhe era muito familiar, queria
ver se era realmente o cara que estava pensando que era.
Ficou alguns minutos olhando fixamente para a porta, olhou
bem os detalhes da pequena abertura que havia nela, sabia que o sonho que
tivera tinha sido algo que realmente aconteceu ali, não duvidava disso.
Então ele resolveu sair do quarto e dar mais uma boa olhada
no andar, fazia isso evitando olhar para o esqueleto-que-jazia-ali. Ao sair
dali ele continuou olhando os detalhes daquela porta esperava encontrar mais
alguma coisa importante nela, e quando chegou ao corredor começou a observar
melhor o mesmo.
Mesmo de dia, a escuridão ainda tomava conta do local, eram
poucos os focos de luz solar por ali, além das que vinham da janela do quarto
os outros eram de alguns buracos que tinham em algumas partes das paredes, e
dessa forma tentou se guiar.
Andava devagar tentando ver por onde pisava, foi quando houve
um momento em que ele pôs a mão no bolso e teve uma pequena surpresa. Havia um
isqueiro lá dentro, o que era estranho, já que não era de fumar. Charlie parou
por um instante tentando se lembrar como aquilo foi parar ali, foi quando se
recordou que aquele era o isqueiro de David (esse sim fumava) que ele tinha
pedido pra Charlie guarda-lo por um momento por alguma razão e depois se
esqueceu de pega-lo de volta.
De uma forma ou de outro aquilo ali seria útil para Charlie
no momento, o acendeu e conseguiu um mínimo de iluminação, o que já ajudaria em
algo, provavelmente gastaria todo o gás que ainda restava nele, mas pouco se
importava com isso, se David ainda quisesse usar aquilo depois e não tivesse
mais nada era azar o dele.
Ele começou a observar as paredes do corredor, voltou a ver o
retrato da família cujo um dos membros estava na camisa de força, Charlie olhou
esse retrato com atenção, se lembrou do sonho que teve e por isso reparou com mais
atenção no homem com a camisa de força, se recordara bem, era o mesmo cara que
viu em seu sonho, e ao lado dele havia outro rapaz um pouco familiar, mas que
estava um pouco escondido por trás dos ombros das outras pessoas, o que
dificultava uma observação mais aprofundada do próprio.
E ao lado desse retrato, Charlie viu um outro que ele não
tinha percebido que estava ali quando olhou na primeira vez, era o retrato de
uma mulher velha, que parecia ter sofrido bastante na vida, com uma cara que
aparentava está acabada e completamente mal-humorada.
Ele olhou bem pra esse retrato, tentava supor quem teria sido
aquela mulher, provavelmente tinha sido alguma antiga moradora do prédio,
voltou a olhar o retrato da família na esperança de que fosse alguém de lá, mas
ninguém se encaixava no perfil, pelo menos não na opinião dele.
Voltou a olhar para aquela mulher, reparou bem em seu olhar,
ele expressava ódio, rancor, e qualquer outra coisa do gênero. Depois de alguns
segundos a encarando, Charlie sentiu um calafrio, sentia como se aquela velha estivesse
o observando, aliás, desde que acordara tinha a sensação de estar sendo
observado, fosse por aquela mulher ou fosse por qualquer outra entidade que
estivesse naquele local junto com ele, essa ideia o dava arrepios. Então por
isso ele parou de olhar para o retrato e voltou a andar pelo corredor.
Pouco depois ele passou pelo banheiro, e lá dentro vira
novamente aquele estranho rato, o que não era se surpreender levando em questão
a podridão do ambiente. Quando Charlie apareceu na porta, o rato se enfiou em
um buraco na parede próxima ao vaso.
E assim Charlie esperava que ele não saísse nunca mais de lá.
E pouco depois ele chegava a porta do andar, Charlie mexeu na
maçaneta na esperança dela abrir, certamente, foi em vão, se sentia um tolo por
achar que de alguma forma a porta estaria aberta.
Então ele decidiu encostar o ouvido na porta e tentar ouvir a
movimentação da loja naquela hora, desligou o isqueiro e assim o fez, foi então
que ouviu uma pequena movimentação, provavelmente à livraria tinha aberto há
pouco tempo.
- TEM ALGUÉM AI? – gritou Charlie
- ESTOU PRESO AQUI EM CIMA, ALGUÉM ME AJUDA?
Esperou alguns segundos, e ainda assim nenhum sinal de
movimentação próximo a porta.
- CHAMEM O MALDITO DUPRE, PORRA!
E assim começou a esmurrar fortemente a porta aos gritos de
desespero.
“O que está havendo?” se perguntava.
“Ninguém realmente está me ouvindo ou está todo mundo
simplesmente me ignorando?”
- DAVID, VOCÊ ESTÁ AÍ? – gritava na esperança do mesmo ouvir
– ESTOU PRESO AQUI EM CIMA.
Respirou fundo e gritou:
-DAVID, PORRA!
Falava ainda esmurrando a porta.
Quando viu que nada daquilo iria adiantar, se sentou próximo
a porta e fez o possível para não chorar, o desespero cada vez mais tomava
conta dele, aos poucos se sentia cada vez mais perdido e sem esperanças.
Foi então que Charlie se lembrou que seu casaco e seu
guarda-chuva ainda estavam lá onde tinha deixado.
“Alguém deve reparar nisso, não é possível, eles sabem que eu
não sou de esquecer minhas coisas por ai, eles devem achar isso estranho”
pensava incansavelmente.
Continuava ali sentado na esperança de que mais cedo ou mais
tarde alguém apareceria pra resgata-lo, alguém iria ver as coisas dele ainda lá
e iriam pressionar o filho da puta do Dupre, essa era a única coisa que ele
tinha em mente, a única coisa que o impedia de perder a sanidade por completo.
E assim passavam-se as horas, os minutos, e os segundos,
Charlie ainda perambulava pelo andar, vez ou outra fazia alguns barulhos na
tentativa de chamar a atenção de alguém, mas ainda era como se ninguém o
ouvisse.
Vez ou outra ele voltava a encarar os retratos nas paredes do
corredor, ainda tentava identificar aquele rapaz que o parecia familiar, da
mesma forma também analisava a velha mal-encarada do outro quadro, ela ainda o
dava arrepios, mas por alguma razão ele esperava encontrar nela alguma
resposta, alguma coisa que tivesse passado despercebido.
Evitava entrar no quarto, queria ficar o mais longe possível
do esqueleto-que-ali-jazia, e também não ousava entrar no banheiro por causa do
estranho rato que morava lá, mesmo quando tinha vontade de fazer xixi, ele
preferiu fazer isso no canto do corredor a entrar naquele banheiro.
O relógio corria mesmo Charlie sem vê-lo, e ainda assim
parecia que ninguém na loja notara sua falta, ninguém viria em seu socorro, nem
sequer um sinal de movimentação quando ele fazia algum barulho.
Naquele dia a loja fechava mais cedo, às uma e meia da tarde,
nessa hora Charlie fez mais uma tentativa de chamar a atenção de seja lá quem
passasse, mas ainda assim de nada adiantou.
Todos tinham ido embora e mais uma vez Charlie estava lá em
cima sozinho, o único que ainda se encontrava no prédio além dele mesmo era o
velho Dupre, que provavelmente estava na sua sala fazendo seja lá o que fosse
não se importando com seja lá com o que tivesse ocorrendo no último andar.
E quanto menor era a movimentação no local, mais assustador
ele ficava, todo e qualquer ruído já assustava Charlie, isso sem falar naquele
maldito rato que continuava perambulando por ali.
E pra piorar, ele sentia fome e sede, não colocava nada na
boca desde a hora do almoço do dia anterior, daria tudo por uma simples sopa de
macarrão, daria tudo até mesmo por um pedaço do brownie sem gosto da Jen.
Pensava bastante na Jen, se perguntava como ela estava, e o
quanto ela estava preocupada, queria poder falar com ela de alguma forma,
queria ouvir sua doce voz mais uma vez, só queria poder chegar em casa e
abraça-la fortemente pelo resto do dia.
E aos poucos se diminuía o movimento na Praça Berkeley, no
sábado de tarde boa partes dos negócios ao redor praça fechavam, no local
normalmente apenas se via algumas pessoas nos bancos a procura de sossego ou um
tempo sozinhos, na maioria das vezes eram casais que queriam curtir um momento
juntos.
O tempo continuava correndo no relógio, a tarde se passava e
Charlie se encontrava na mesma situação, andava de um canto para o outro no
andar na tentativa de manter sua mente ocupada de alguma forma, checava os
retratos na parede do corredor repetidamente e fazia alguns barulhos ainda tentando
chamar a atenção de alguém.
Até que a noite finalmente chegou, e a Praça Berkeley se
encontrava completamente vazia. Nessa hora Charlie estava no quarto tentando
olhar alguma coisa pelos pequenos buracos nas tábuas da janela, após ver que
não havia ninguém no lado de fora ele se deitou o mais longe possível do
esqueleto-que-ali-jazia.
Tentava dormir, mas estava sem sono. Era difícil ter sono com
a fome em que ele estava, queria desesperadamente comer algo, seja lá o que fosse
não fazia questão de que o gosto fosse bom, era capaz até de comer o próprio
braço se necessário.
Foi então que ele ouviu algo entrando no quarto, olhou
rapidamente, mas sabia que era aquele rato maldito mais uma vez. Da porta ele
foi direto pra perto do esqueleto-que-ali-jazia, deu uma rápida analisada na
caveira e se abrigou dentro de seu olho, Charlie sentiu um forte arrepio ao ver
a cena.
Ele se virou para o lado novamente e voltou a se concentrar a
tentar dormir, mas os ruídos ainda o incomodavam, mais uma vez ele ouviu o
choro de uma criança vindo não-sabia-de-onde, e junto também ouvia gritos de
desesperos de uma mulher. Charlie fechou os olhos e começou a falar para si
mesmo de que aqueles sons eram apenas coisas da sua cabeça e que nada daquilo
era real.
Ouvia também o rato roendo o crânio do esqueleto-que-ali-jazia,
o que o fazia sentir uma grande agonia.
Foi então que Charlie teve uma ideia que poderia resolver uma
parte de seus problemas, mas que também exigiria uma grande força de vontade
dele. Ele iria ter a chance de matar dois coelhos com apenas uma pancada,
“coelhos” esses que seriam a sua fome, e aquele rato maldito.
Sim, Charlie estava pretendendo matar o rato e comer a sua
carne, pensando daquela forma era nojento, mas era a única opção que tinha para
matar a sua fome. E assim Charlie se virou para o esqueleto e esperando que o
rato saísse de lá, se levantou um pouco e procurou alguma coisa que poderia
usar como arma.
Achou no canto do quarto um pedaço de madeira que tinha a
ponta de um prego exposto, com certeza não acharia ferramenta melhor. Ele pegou
a tábua e esperou o rato observando atentamente o esqueleto-que-ali-jazia.
Poucos minutos depois o maldito finalmente saíra de lá, ele
andava vagarosamente observando o quarto, parecia até que sabia que correria
perigo. Charlie se aproximou lentamente do rato com a tábua levantada, estava
pronto para matar aquele roedor nojento, e quando se aproximou o suficiente
tentou dar o bote.
O rato percebendo o perigo, no mesmo instante saiu correndo em
direção a porta, Charlie acabou acertando o chão com a tábua, por pouco não
perdia o equilíbrio, mas conseguiu se manter de pé. Vendo o pequeno filho da
puta saindo pela porta do quarto ele seguiu-o, o maldito era muito rápido, em
poucos segundos ele atravessou o corredor e entrou no banheiro.
Ele tentou o acompanhar, mas quando entrou no banheiro a
droga de rato já tinha entrado no buraco da parede. Ele ainda tentou dar alguns
socos e chutes na parede na esperança de conseguir com que o rato saísse dali,
mas provavelmente aquela toca levava para algum outro canto do prédio, em que
aquele maldito estaria mais seguro e bem longe de Charlie.
A raiva subiu a cabeça de Charlie, começou a xingar o rato de
todas as maneiras possíveis, e também no seu ataque de fúria ele chutou a porta
do banheiro a ponto de solta-la das dobradiças (que já eram bastante velhas).
Ele não se daria por derrotado, agora ficaria de tocaia
próximo a porta do banheiro esperando que o rato aparecesse novamente, era uma
questão de sobrevivência. Se sentou no corredor, colocou o pedaço de madeira
bem ao seu lado e ficou aguardando qualquer sinal de movimento vindo de dentro
do banheiro, dessa vez não pretendia dormir.
O tempo foi passando e o rato não deu nenhum sinal desde a
hora que entrou no buraco da parede, Charlie já se sentia cansado, mas pelo
menos já ignorava os ruídos vindos Deus sabe lá de onde, apesar de tudo, aquela
era uma boa forma de manter sua mente ocupada.
Ele afastou um pouco o pedaço de madeira e se deitou no chão
do corredor, ainda olhava atentamente para o banheiro, mas passava-se o tempo e
assim começou a sentir seus olhos pesando. E dessa forma não demorou muito para
ele finalmente pegar no sono.
Naquela noite, Charlie teve mais um sonho estranho, dessa vez
ele estava em pé no corredor do último andar, ele olhou para as paredes e
reparou que os retratos não estavam lá. Certamente estranhou isso.
Foi então que de repente se assustou com uma movimentação,
era o maldito rato saindo do banheiro rapidamente em direção ao quarto. Na hora
Charlie procurou pela sua tábua, mas viu que por alguma razão ela não estava
mais ali, mas mesmo assim ele seguiu o rato.
Quando entrou no quarto viu também que o
esqueleto-que-ali-jazia não se encontrava lá, e no mesmo tempo em que se deparou
com isso ele também viu o rato fugindo do local por entre suas pernas.
Charlie mais uma vez foi atrás do maldito, e dessa vez ele ia
em direção da escada. Mas ai chegar lá teve mais uma surpresa, a porta que
fechava aquele andar também não estava mais lá, ficou tão intrigado com isso
que só depois se deu conta de que aquele roedor nojento tinha descido por ali.
E assim Charlie decidiu esquecer o rato por um tempo e
reparou no que estava a sua volta. O andar estava com uma boa aparência, estava
limpo e arrumado, foi nesse momento que se deu conta que estava sonhando.
Mas antes dele poder pensar em mais qualquer coisa, ele ouviu
um grito vindo da parte de baixo da casa, era o grito de desespero de uma
mulher.
- ME SOLTA, SEU DOENTE!
Ouviu Charlie, seguido do quebrar de algum objeto (supôs ele,
um vaso de flores).
- VOLTE AQUI, SUA PROSTITUTAZINHA! – gritou algum homem, que
pela voz já era de meia-idade.
Foi então que Charlie decidiu espiar pela escada o que estava
acontecendo, e no mesmo instante viu uma jovem mulher subindo a escada correndo,
ela tinha uma ferida na testa que sangrava bastante.
Logo atrás dela vinha o homem que tentava ataca-la, ele
aparentava ter uns cinquenta anos e ela uns vinte. Ele a seguia com um taco de
golfe em mãos e a xingando de segundo em segundo.
Em um momento na escada ele conseguiu segurar a moça pelo
cabelo, e quando ele levantou o taco pra tentar acerta-la na cabeça, ela lhe
deu uma tapa na cara e um chute na barriga que o fez rolar escada abaixo.
Ela voltou a correr em direção ao andar de cima, e quando lá
chegou continuou correndo em direção ao quarto, Charlie resolveu segui-la. Ele
conseguiu entrar no quarto junto antes que ela tivesse conseguido fechar a
porta e tranca-la.
Dentro do quarto, Charlie estranhou ao vê-lo todo mobiliado,
com um armário, uma cama, um criado-mudo, e outros, aquele provavelmente era o
quarto da moça, mas achava engraçado esses detalhes não terem aparecido na
primeira vez que ele entrou lá quando estava atrás do rato, mas ignorou isso,
aliás, aquilo era um sonho, e sonhos tendem a serem sem sentidos.
Por um instante ele tentou falar com a moça que no momento
tentava se esconder dentro do armário, perguntou-a o que estava acontecendo,
mas aparentemente ela não conseguiu ouvi-lo, ou vê-lo. Pouco depois se ouviu os
fortes passos do homem no outro lado da porta, ele tentou girar a maçaneta, mas
certamente viu que a porta estava trancada, e por isso ele começou a tentar
arromba-la.
- VÁ EMBORA, SEU VELHO DESGRAÇADO! – gritava a moça ainda
dentro do armário.
O velho não parava, ele continuava tentando arrombar a porta,
e aos poucos ia conseguindo, a madeira já sofria suas primeiras rachaduras. E
depois de bastante esforço, ele finalmente pôs a porta abaixo.
Ao entrar no quarto ele foi rapidamente em direção ao
armário, e quando abriu a moça lhe deu uma grande cuspida na cara e tentou
correr mais uma vez. Sendo que dessa vez, mesmo tendo que limpar o cuspe dela
do rosto, ele conseguiu agarra-la pelo braço e assim não a soltou.
- Agora você não me escapa. – disse ele
A moça esperneava incansavelmente tentando se soltar, gritava
o mais alto que podia, e quando o homem colocou a mão em sua boca na tentativa
de silencia-la, ela o mordeu. E gritando de dor, ele lhe deu um soco no rosto e
a jogou na cama.
O velho começou a rasgar a parte de baixo da camisola da
moça, retirou a sua calcinha e depois começou a abaixar as calças. Mas no seu
primeiro momento de distração, a mulher lhe deu outra tapa no rosto e um chute
nos testículos o deixando caído no chão, ela aproveitou para correr em direção à
porta, mas quando passou pelo velho, ele a puxou pela perna e a derrubou
também.
Ela continuou lutando contra ele, tentou por várias vezes
chutar seu rosto, mas o homem continuava a puxando em sua direção. Até que um
de seus chutes o acertou no olho fazendo com que ela se soltasse.
Quando ela se levantou, olhou para todos os lados tentando
achar uma saída. Descer não adiantaria de nada, todas as portas da casa estavam
trancadas, e lhe faltava forças para correr, foi então que ela olhou para a
janela do quarto, mas ao mesmo tempo percebia que o velho estava se levantando,
ele pegava seu taco de golfe e se preparava para ir em sua direção.
Ao perceber isso ela correu em direção da janela, parou perto
dela por um instante e olhou para baixo, provavelmente calculando sua altura.
Até que olhou para trás e viu o homem correndo em sua direção.
Sua reação foi se jogar da janela, Charlie ao ver a cena
correu em sua direção. A expressão facial do velho passou de “raiva” para
“horror” em poucos segundos, e alguns segundos depois estavam os dois no
parapeito da janela olhando para o corpo da moça que estava jogado no chão da
rua.
A agitação chamou a atenção dos moradores ao redor da praça,
então nas outras casas viam-se as luzes sendo acesas e pessoas saindo para ver
o que tinha acabado de acontecer.
- Não... – falava o velho desesperado – minha sobrinha.
Isso chamou a atenção de Charlie, acabara de se lembrar das
histórias que tinha lido na internet sobre o prédio, e que uma delas era
exatamente aquela que ele tinha acabado de presenciar, a moça que caía da
janela enquanto tentava fugir do tio tarado.
Foi então que nessa hora ele começou a sentir uma coceira
estranha no rosto, e mesmo quando ele a coçava, ela não parecia passar...
E quando se deu conta ele acabara de acordar no meio do
corredor empoeirado do último andar, e a coceira que sentia era aquele rato
fedido que andava por cima do seu corpo. Ao perceber isso Charlie se levantou
de susto, fazendo com que o rato fosse arremessado para perto do banheiro, ele
pegou a tábua e partiu para cima dele, mais uma vez sem sucesso, já que o
maldito se enfiara no buraco da parede de novo.
Charlie mais uma vez sentiu a raiva lhe subir a cabeça, raiva
essa que se misturava com o nojo que sentia pelo rato ter andado por cima do
seu rosto.
Até que se deu conta de que era domingo, ou seja, a loja não
abria naquele dia, o que significava que provavelmente aquele seria mais um dia
em que ele ficaria lá preso com a esperança de alguém aparecer para tira-lo de
lá, mas sem ter a certeza de que alguém tenha se dado por sua falta.
Enquanto isso, Charlie continuava na sua tentativa de manter
sua mente ocupada de alguma forma, fazia as mesmas coisas repetidamente.
Perambulava pelo andar, encarava os retratos na parede do corredor, fazia
barulho na esperança de alguém o ouvir ali, e esperava o rato sair da sua toca,
isso tudo sempre com a tábua em mãos.
As horas passavam, e cada vez mais Charlie enfrentava o ócio,
aos poucos ele sentia sua sanidade sendo sugada aos poucos, muitas vezes ele
ficava pensando na Jennifer na tentativa de não ficar louco, mas às vezes
parecia que isso apenas piorava a sua situação. Ele estava preocupado com ela,
queria se comunicar com ela de alguma forma e dizer-lhe tudo que aconteceu
desde o momento em que entrou naquele local.
Ele buscava tranquilidade na imagem de Jen, mas parecia que
isso não adiantava muito, apenas o deixava mais preocupado.
E as horas continuaram a passar, e Charlie ainda esperava o
maldito rato aparecer, o movimento na Praça Berkeley naquele dia era muito
pouco, nenhum dos estabelecimentos ao redor eram abertos em dia de domingo.
Em alguns momentos, quando Charlie olhava por entre os
buracos das tábuas que tapavam a janela, ele via umas poucas pessoas passarem
pela praça, boa parte delas eram casais que procuravam por um momento só para
eles. Nessas horas, ele mais algumas vezes fazia algum barulho pra tentar
chamar a atenção, continuava sem adiantar nada.
Apesar de que houve um momento em que uma família passava por
lá, um pai, uma mãe e uma filha, nessa hora, Charlie fez mais uma tentativa de
chamar a atenção. Ele começou a gritar e a bater nas tábuas da janela.
Por um momento, mesmo com a visão completamente reduzida da
família, ele viu que a garota tinha notado algo estranho por ali, e assim ele
continuou fazendo barulho. Pouco depois ele viu que a menina falava alguma
coisa com os pais, provavelmente perguntando se eles estavam ouvindo o que ela
estava ouvindo.
Charlie cruzou os dedos, e rezou com todas as forças
interiores que tinha para que finalmente, aquela família atendesse ao seu
chamado.
Ele continuava os observando, estava depositando todas as
suas esperanças naquilo, e eles continuavam a conversar, a garota insistia em
algo pros pais e apontava para a livraria. Charlie tentava olhar para os rostos
deles, queria ver se eles a estavam levando a sério, mas sua visão através
daqueles buracos era muito limitada.
E depois de alguns minutos observando a garota tentando
convencer os pais de alguma coisa que era relacionada à livraria, a família
seguiu o seu caminho, acabando assim com as esperanças que Charlie tinha.
- NÃO, NÃO VÃO, POR FAVOR! – gritou ele em mais uma tentativa
desesperada.
Quando os perdeu de vista começou a esbravejar de raiva,
socou as tábuas das janelas repetidas vezes e quase machucou o pé chutando a
parede duas vezes. Sentia-se cada vez mais desesperado.
E o relógio continuava a correr, enquanto as coisas dentro do
último andar não mudavam nada, Charlie continuava na mesma situação, o rato não
tinha mais botado a cara fora do buraco e o velho Dupre continuava a ignorar o
que acontecia no andar de cima da loja, provavelmente ele estava sentado na sua
sala rindo do desespero de Charlie.
A noite chegou mais uma vez em Londres, naquele momento o
movimento na Praça Berkeley era zero. Charlie se sentia cansado, estava deitado
no meio da quarto em que o esqueleto-que-jazia-ali se encontrava, queria
conseguir dormir, mas o sono não vinha.
Ele continuava a ouvir os estranhos ruídos que vinham de
todos os cantos, ele se perguntava onde morava aquele maldito bebê que não
parava de chorar. Naquela noite, fortes ventos correram por Londres, um reflexo
disso estava nas tábuas que tapavam a janela do quarto que ficaram balançando
repetidamente, por um instante, Charlie teve a esperança de o vento
arrebenta-las.
Mas foram apenas meras esperanças, assim como todas que ele
teve desde o momento que o velho Dupre o trancou lá em cima.
Por um instante, Charlie começou a olhar para o
esqueleto-que-jazia-ali, já não se assustava mais com ele. Começou a pensar
quem era ele antes de chegar àquela situação, como ele teria parado ali?
E também pensou no triste fim que ele teve, ali trancado no
último andar daquele prédio, sem nem ao menos ter o direito de um enterro digno,
e provavelmente sem seus entes queridos saberem onde ele estava.
A caveira parecia olhar fixamente para ele, Charlie por
alguns instante sentia como se o esqueleto estivesse realmente o observando, e
algumas vezes ele tinha a rápida impressão de vê-lo se mover.
Até que Charlie começou a ouvir alguma coisa andando pelo
corredor, dessa vez ele ficou tenso, a sensação de estar sendo observado
aumentava ao passar das horas dentro daquele inferno. Essa coisa se aproximava
cada vez mais do quarto, ele ouvia pequenos passos rápidos se aproximando da
porta que estava aberta.
Quando percebeu que essa “coisa” tinha passado pela porta,
ele ousou olhar. Mas viu que era apenas aquele maldito rato. Ele começou a rir
consigo mesmo com aquela situação, por alguma razão, ele achava que algo monstruoso
estaria entrando ali naquele quarto, foi quando Charlie percebeu que ele não
estava bem e que a tentativa dele de não ficar doido estava fracassando.
Mas logo após pensou:
“Finalmente esse filho da puta saiu do buraco.”
Foi então nesse momento que ele voltou a ter a tábua em mãos,
iria fazer mais uma tentativa de abater aquele roedor fedido.
Àquela altura sua fome já estava o afetando psicologicamente,
Charlie não sabia mais o que era por um alimento na boca, e a sede também só
piorava sua situação, e se ele queria melhorar um pouco isso não podia perder
aquela tentativa.
Ele se levantou vagarosamente com a tábua em mãos, o rato
naquele momento estava checando alguma coisa no esqueleto-que-jazia-ali,
Charlie aproveitou para se aproximar. Tentava fazer o mínimo de barulho
possível, não queria assustar o maldito até a hora certa, dava um passo após o
outro o mais devagar possível.
E o rato continuava distraído sem saber o que enfrentaria
ali, continuava a cheirar o esqueleto logo à frente a procura de alguma coisa
que o interessasse.
Quando Charlie se aproximou o suficiente, ele foi levantando
a tábua já pronto para dar o bote. Mas por um momento, o rato parou olhando
atentamente para algo, para Charlie, pareceu que o maldito tinha percebido que
algo estava errado, até que rapidamente, o roedor olha na direção dele.
Foi nessa hora em que Charlie tentou acertar o rato com a
tábua. Na primeira tentativa o maldito foi rápido e conseguiu desviar, e logo
em seguida ele correu em direção à porta.
A raiva subiu a cabeça de Charlie, e dessa forma ele foi
atrás do roedor com todas as forças que ainda lhe restava, e assim ele correu
com uma rapidez que ele nunca imaginara ter antes, ele conseguia acompanhar os
passos do rato, sendo o mesmo bastante rápido.
Ele estava decidido a não descansar naquela noite se não
conseguisse abater aquele roedor nojento, em outro momento ele estava próximo o
suficiente para tentar bater no rato mais uma vez, mas o nervosismo e sua baixa
sanidade fez com que ele errasse mais uma vez.
Charlie não conseguia mais raciocinar, após a segunda
tentativa ele olhou para o rato correndo em direção ao banheiro, seu campo de
visão não estava mais nítido, se sentia um pouco tonto, por um instante pensou
que fosse desmaiar.
O rato parou em frente a porta do banheiro e olhou para ele,
provavelmente estava checando se ele iria tentar mais alguma coisa. Charlie
encostou-se a uma parede para não acabar caindo, olhou para o rato teve a
impressão de ver três dele.
“A fome deve estar realmente me afetando” pensou Charlie.
E dessa forma ele foi se concentrando em por a sua cabeça no
lugar, tentou de todas as formas se manter firme, e quando ele se sentiu um
pouco melhor se pôs de pé novamente.
Voltou a olhar para o rato, e dessa vez o via nitidamente,
sendo que o maldito já estava em frente a porta do banheiro e com uma distância
considerável dele, se tentasse correr em sua direção iria assusta-lo e ele iria
se enfiar no buraco da parede mais uma vez para sair Deus lá sabia quando.
Então ele levantou a tábua mais uma vez, mas dessa vez iria
tentar acerta-lo a distância, deu um grande suspiro, aquela provavelmente seria
a sua última tentativa, e ele ainda não se sentia cem por cento bem, mas iria
arriscar da mesma forma.
Tentou mirar bem, mesmo isso sendo difícil para ele naquele
momento ainda tentava manter a cabeça no lugar, e quando se sentiu preparado
ele arremessou a tábua em direção ao rato.
Quando o fez ele não conseguiu manter o equilíbrio, então
após fazer o arremesso Charlie foi ao chão. Não chegou a ver se tinha acertado
ao seu alvo, quando estava no chão os ruídos ao seu redor ficaram mais altos,
por um instante teve a impressão de alguém ter sussurrado algo no seu ouvido,
algo em alguma língua que ele não compreendia, também não sabia se aquilo era
um sussurro ou apenas o vento soprando em sua orelha.
Charlie não sabia mais nada na situação em que estava, e
possivelmente aquilo poderia ser apenas um pesadelo em que ele nunca iria
acordar.
Quando recuperou um pouco a sua consciência, ele tentou se
levantar e olhou para onde a tábua tinha caído. Nesse momento, vira que mesmo
não estando bem psicologicamente ele conseguira o que queria, ele tinha acertado
o rato.
O roedor maldito tinha sofrido um arranhão do prego que
estava na tábua, e agora tentava cambalear em direção ao banheiro, certamente a
sua velocidade não era a mesma, ele se esforçava para andar o mais rápido que
conseguia mesmo com uma ferida nas costas.
Charlie se levantou e foi em direção a tábua, já se sentia
bem o suficiente para fazer isso, aliás, se sentia alegre por ter conseguido
acertar aquele maldito, e quando ele pôs mais uma vez a tábua em mão, a segurou
firmemente e se preparou para acertar o rato mais uma vez, dessa vez para
mata-lo.
Garantiu que dessa vez o prego perfurasse a pele do rato
quando deu a primeira paulada, ouviu-se o guincho de dor que o maldito dera
após ser atingido, aquilo era música para os ouvidos de Charlie. E assim continuamente
ele foi batendo cada vez mais naquele roedor nojento.
A cada paulada os guinchos de dor do rato iam ficando cada
vez mais fracos, seu sangue já formara uma poça no chão, e aos poucos se via a
sua respiração morrer, aquele era o trágico fim para aquele rato maldito.
Charlie soltara a tábua após perceber que o roedor não
respirava mais, o virou de barriga pra cima e o tocou para ter certeza de que
estava morto, seus sapatos estavam sujos de sangue, mas ele não ligava mais
para isso, finalmente teria um jantar naquela noite.
A carne do rato não parecia ser saudável, mas a única coisa
que Charlie queria naquele momento era comer alguma coisa, independente do que
fosse, e assim começou a se “deliciar” com o seu jantar. O gosto era horrível,
mas pouco importava para ele, aquilo ainda assim matava a sua fome.
E para matar a sua sede, Charlie tomava um pouco do sangue do
rato, não adiantava de muita coisa, mas já ajudava em algo.
Após comer uma parte da carne do rato, Charlie se sentou
encostado na parede para descansar um pouco, sua boca estava toda suja de
sangue, e sua camisa estava toda manchada. Ele olhou para o rato mais uma vez,
a fome não fora embora por completo, mas aquela possivelmente seria sua única
fonte de alimento até quando ele conseguisse dar um jeito de sair dali, então
resolveu guardar o resto para outra hora.
“Mas será que a carne não iria estragar se eu fizesse isso?”
pensou por um instante.
Mas depois de pensar mais um pouco sobre isso, ele disse para
si mesmo:
- Dane-se!
E pelo resto da noite ele ficou ali encostado na parede
próxima ao banheiro, olhando para o nada e se distraindo com Deus lá sabia o
que. Àquela altura, ele não ligava mais para os ruídos ao redor dele.
E um pouco depois disso tudo, ele conseguiu pegar no sono,
esse momento possivelmente foi à prova de que a frase “barriga seca não dá
sono” é verdade.
E os próximos três dias todos pareceram iguais para Charlie,
mesmo com o movimento da loja nos dias normais ninguém parecia ouvi-lo lá em
cima, em certos momentos ele até desistia de tentar, apenas fazia gastar
energia à toa.
Tentou aproveitar a carne do rato aos poucos, no dia seguinte
ela já estava um pouco podre, mas Charlie não se importava mais com isso.
Depois de três dias a sua sanidade já não existia mais, ele não sabia mais
distinguir o que era real e o que era apenas coisa da cabeça dele, agora tinha
a impressão de sempre que passava pelo corredor o retrato da mulher velha o
seguia com o olhar.
No quarto dia já se não havia mais carne no corpo do rato, a
ponto de Charlie começar a roer os ossos do animal para enganar a barriga, isso
sem falar nas vezes em que ele comia algum inseto que passava pelo recinto
(aranhas, formigas, baratas, e em um caso específico, uma mariposa).
Todos os dias Charlie se perguntava se alguém estava a sua
procura, fosse Jennifer, David, a sua família, qualquer um, e se perguntava
também o que teria acontecido com os seus pertences que ficaram pendurados
próximo a porta da loja, se por um acaso se ainda estariam lá ou se o velho
Dupre se livrou deles.
E todas as noites, Charlie sonhava com alguma coisa que
ocorreu no prédio no passado, sempre acabava dando um passeio pelas histórias
sombrias do local. Nas noites seguintes, sonhara com a cena em que um empregado
da casa assassinou uma garota no último andar, aquele era seu quarto na época
em que morava lá, ela brincava com as suas bonecas de pano quando o criado da
casa entrou e lhe cortou a garganta.
Nas outras duas noites, ele sonhou com a senhora que passou
uma noite no último andar e foi encontrada completamente fora de si e com o
homem que no dia seguinte também passou uma noite no andar e foi encontrado
morto no outro dia, o mesmo teve a sua morte gravada em áudio. No sonho, as
autoridades checaram as gravações para tentar descobrir o que aconteceu lá
dentro, mas o que conseguiram ouvir foram apenas os gritos do homem e ruídos
indecifráveis.
Foi depois desse sonho que Charlie resolveu se dedicar ao máximo
a juntar todas as pistas sobre aquele lugar, não se baseando apenas nos sonhos,
mas também nos retratos do corredor e as coisas que ele já tinha pesquisado
antes de entrar lá.
Não tinha nada para anotar, mas ele conseguia juntar as peças
na sua memória, ou pelo menos partes delas. Todos aqueles sonhos realmente
tinham acontecido ali, os retratos eram de antigos moradores do local, e entre
eles estava o homem da camisa de força, cujo viu em um de seus sonhos. Mas as
questões principais eram, quem era aquela senhora do quadro no corredor, porque
que o rosto de um dos integrantes da família do homem da camisa de força lhe
era familiar, e principalmente, quem era aquele esqueleto-que-ali-jazia e
porque ele foi parar lá?
Naquele dia Charlie nem chegou a se preocupar em fazer algum
barulho para chamar a atenção de seja lá quem fosse, e se concentrou apenas em
ligar as peças, nem mesmo os ruídos vindos do além o incomodaram.
Quando a noite voltou a cobrir o céu de Londres, outra forte
tempestade veio junto, mas nem isso pareceu incomodar Charlie. Talvez a loucura
já tenha tomado conta de sua mente por completo, àquela altura não sabia mais
se aquilo tudo que ele ouvia era real, e também vez ou outra ele tinha algumas
alucinações.
Muitas vezes ele olhava para a porta do quarto e jurava ver
alguém ali parado o observando, ás vezes tinha a impressão de ouvir os passos
do rato, sendo que depois Charlie lembrava que o mesmo estava morto e que sua
carcaça estava ao seu lado sendo tomado pelas moscas,
Ás vezes também tinha a impressão de ver o esqueleto-que-jazia-ali
mover a boca como se tentasse falar algo, mas talvez isso ocorresse porque ele
muitas vezes ficava olhando fixamente para o mesmo, como se realmente esperasse
que ele lhe dissesse alguma coisa.
Era engraçado, porque no início Charlie evitava ao máximo
olhar para o esqueleto, mas parecia que agora ele fazia questão de ficar o
encarando, ele esperava encontrar alguma resposta fazendo isso.
O céu parecia que ia cair sobre Londres, aquela era mais uma
noite de tempestade com fortes trovões, da mesma forma que foi a primeira noite
em que Charlie passou dentro do último andar, sendo que a diferença agora era
que ele não se importava mais com os trovões, não se importava mais com nada.
E ainda encarando o esqueleto-que-jazia-ali, e com os trovões
iluminando vez ou outra o quarto do último andar, Charlie aos poucos pegou no
sono.
Charlie teve a sensação de apenas alguns minutos terem se
passado após acordar por alguma razão que nem ele mesmo sabia explicar porque, ainda
era de noite e a tempestade ainda caia do lado de fora.
Que horas eram? Ele não tinha mais noção disso há um tempo, e
também não fazia mais diferença para ele ser onze da noite ou quatro da manhã. Ele
olhou ao seu redor e não viu nada de diferente, os trovões ainda iluminavam o
quarto vez ou outra e o esqueleto continuava ali onde sempre estava.
Ele se se levantou um pouco e andou em direção à janela,
olhou pelas pequenas brechas entre as tábuas e viu a Praça Berkeley
completamente deserta, nada fora do esperado.
Charlie se virou e andou um pouco ao redor do quarto como se
estivesse procurando algo, o que era que ele estava procurando, nem ele mesmo
sabia. Os trovões tinham cessado por um momento, então por isso a sua
visibilidade do quarto estava quase zero.
Foi então que ele se lembrou do isqueiro do David que ainda
estava no seu bolso, não o utilizava fazia alguns dias, por isso ainda havia
gás o suficiente nele. Ele o acendeu, a luminosidade do objeto era pequena, mas
já ajudava em algo, Charlie procurava pela porta do quarto, o sono tinha ido
embora e ele queria circular um pouco pelo local a procura de alguma coisa.
Enquanto procurava a porta Charlie ouviu um barulho estranho
que vinha de dentro do quarto, de algo que provavelmente estava perto dele, ele
tentou procurar o que era, mas a baixa visibilidade não o ajudou, no entanto
acabou desistindo e seguiu procurando a porta do quarto.
Charlie foi andando vagarosamente apalpando a parede, ainda
não sentia a maçaneta da porta, e mais uma vez ouviu o barulho de algo se
movendo no quarto, mas dessa vez ignorou.
Até que finalmente sentiu a porta, ela estava fechada.
Charlie tentou lembrar-se de quando a tinha fechado, mas essa memória não vinha
em sua mente, mas logo em seguida esqueceu isso e tentou abri-la.
Sendo que, a porta estava trancada.
Nesse momento, Charlie entrou em desespero, já não bastava
estar preso no andar em si, agora também estava preso naquele maldito quarto.
Desligou o isqueiro por um instante, o guardou no bolso e tentou forçar a porta
a se abrir, mas por mais força que ele fizesse, não adiantava de nada, ela
parecia estar trancada pelo lado de fora.
Foi então, durante esse desespero, que os sons que vinham de
dentro do quarto passaram a ficarem mais fortes, dessa vez Charlie tinha certeza
de que havia algo com ele por ali, foi quando seu desespero chegou a um nível
elevado, em que ele tentou arrombar a porta jogando o seu corpo contra ela.
Até que ele começou a ouvir passos vindo em sua direção, o
medo já tomava conta dele, não fazia ideia do que poderia ser aquilo, e sem o
isqueiro ele não conseguia ver um palmo a frente do nariz.
Rapidamente ele tentou pegar o isqueiro no bolso, sua mão
tremia, e os passos vindo de seja lá o que fosse aquela coisa estavam cada vez
mais próximos. Quando estava finalmente com ele em mãos, ele o acendeu com
dificuldade, falhando três vezes, Charlie estava virado para a parede com medo
de ver o que vinha em sua direção.
Até que ele finalmente se virou com o isqueiro ligado, e
ficou perplexo com o que via, a claridade era baixa, mas ainda assim ele
conseguia ver perfeitamente o que era aquilo, e não acreditando no que estava
na sua frente, o seu desespero já tomava conta dele por completo.
O esqueleto-que-jazia-ali não jazia mais ali, ele estava
agora em pé bem à frente de Charlie, seu crânio mesmo sem olhos parecia
observar a alma dele.
Charlie queria gritar, mas não encontrava mais forças para
isso, estava paralisado diante daquela coisa que o observava, o esqueleto
parecia suspirar bastante diante dele, mesmo não precisando de oxigênio.
Até que em um momento, aquela coisa parecia tentar gritar
algo, mas a única coisa que se ouviu vindo de sua boca foi um berro
indecifrável, e junto com ele Charlie também começou a gritar, queria acreditar
que aquilo que ele via não era real. Após ele também gritar, o esqueleto
segurou o seu pescoço e começou a estrangula-lo.
Charlie lutou contra aquela coisa, deixou o isqueiro cair,
mas aquilo pouco importava no momento, os ossos do esqueleto eram velhos, mas
ainda assim eram fortes o suficiente para ele não conseguir tira-lo de seu
pescoço.
Aquela coisa era forte, aos poucos Charlie estava ficando sem
ar, se sentia cada vez mais fraco, o isqueiro ainda aceso no chão o permitia
ver um pouco do crânio daquela coisa, um pouco daquele olhar vazio e maligno.
Sentia suas forças indo embora, mas mesmo assim não desistia de lutar pela
vida.
Não conseguia mais gritar, não conseguia mais respirar, nem
lutar conseguia mais, sua visão já estava embaçada, ele não conseguia mais ver
nada claramente, suas mãos estavam soltando os dedos do esqueleto, se esforçava
para continuar lutando, mas suas forças não deixavam mais.
Em seus últimos suspiros, em seu último momento de
consciência, ele viu uma coisa estranha saindo da boca do esqueleto, não tinha
certeza do que era, aliás, não tinha certeza de mais nada àquela altura,
tentava identificar o que era aquela coisa.
Até que em um momento, ele conseguiu recuperar um pouco da
consciência, e viu que o que saia da boca daquele esqueleto era um rato,
parecido com aquele mesmo que ele tinha matado, aliás, era o mesmo rato, sendo
que mais ensanguentado, com bastantes feridas expostas e muito mais feio.
Nada mais fazia sentido para Charlie naquele momento, aquele
provavelmente era o seu fim, mas por incrível que pareça ele não conseguia ter
nenhuma lembrança da sua vida enquanto isso. Ele estava preparado para a morte,
e no seu último momento de consciência, sua visão foi a do rato cadavérico
pulando em sua direção...
Até que ele acordou... dessa vez de verdade.
Charlie se levantou assustado, a tempestade ainda caia sobre
Londres, assim como os trovões, e os mesmo o davam um pouco de visibilidade
quando caiam.
Ele quando se levantou, procurou onde estava o
esqueleto-que-jazia-ali, para o alívio dele, a coisa ainda estava lá onde
sempre esteve, e mais importante de tudo, ainda morto. Também procurou a porta
do quarto, e felizmente viu que ela estava entreaberta.
Quando Charlie se virou para o esqueleto, a raiva lhe subiu a
cabeça, mesmo aquilo tudo tendo sido apenas o sonho, ele se sentia irritado com
aquele maldito esqueleto, talvez realmente acreditasse que aquela coisa poderia
criar vida de repente e tentar mata-lo de verdade.
Por mais sem lógica que aquilo parecesse, ele não queria
correr o risco, todos os tipos de possibilidades passavam por sua cabeça, e
naquele momento, o esqueleto representava uma ameaça.
Então por isso, Charlie se aproximou daquela coisa e chutou o
seu crânio na parede, ao contrário do sonho, os ossos não eram tão fortes, e
provavelmente ele formou uma rachadura no mesmo quando atingiu a parede. Ainda
com raiva ele também pisoteou as costelas do esqueleto.
Nessa movimentação a mão do esqueleto se abriu, e caiu uma
pequena bola de papel dela, foi no mesmo instante que um relâmpago iluminou o
quarto. Aquilo chamou a atenção de Charlie, aquilo poderia ser apenas uma
simples bola de papel, mas ele quis checa-la de qualquer forma, algo lhe dizia
que aquilo o daria alguma resposta.
E assim ele pegou a bolinha, e a abriu, a escuridão não o
deixava enxergar bem o que estava escrito nela, então ele pegou o isqueiro que
estava no seu bolso e o acendeu. E dessa forma ele começou a ler o que tinha
escrito lá, descobrindo coisas que acabariam com as suas dúvidas de vez.
Eram várias páginas amassadas juntas, o papel aparentava ser antigo
então Charlie tomou todo o cuidado possível ao maneja-lo. Havia um longo texto
escrito nelas, uma carta, provavelmente, uma carta escrita por seja lá quem
tenha sido aquele esqueleto.
Quando se deu conta disso, ele sabia que provavelmente ali
estaria escrito boa parte das respostas para as suas perguntas constantes sobre
aquele local, sendo assim Charlie finalmente via uma luz no fim do túnel, era
disso que ele precisava.
Então ele se sentou, encostou-se na parede, colocou o isqueiro
em boa posição, e começou a leitura, que pelo tamanho da carta, seria longa. Na
carta, encontrava-se escrito o seguinte texto:
Olá, se você está lendo, é porque eu já estou morto, e espero
que você tenha encontrado essa carta porque finalmente encontraram meu corpo
aqui em cima, mas se você for alguém que cometeu o mesmo erro que eu de entrar
nesse lugar maldito e ficar preso aqui dentro, só lhe dou meus pêsames, e aviso
que se você ainda tem alguma esperança de sair daqui apenas esqueça, pode ser duro
ter que saber disso, mas é a verdade.
Estou escrevendo essa carta na esperança de que alguém saiba
a minha história, e também para avisar qualquer outro pobre coitado que ousou
entrar aqui do seu terrível destino.
Mas antes, vamos começar com quem eu sou. Meu nome é Richard,
no momento em que escrevo essa carta eu tenho 22 anos e sou vendedor da
livraria a mais ou menos um ano.
E caso esteja curioso, hoje é dia 06 de abril de 1996, pelo
menos eu suponho que seja, estou preso aqui há quase uma semana, já perdi
completamente a noção de tempo. Tenho fome e sede, por esses dias eu bebi um
pouco da água da privada do banheiro para enganar um pouco a barriga, é
péssima, eu sei, mas era a única opção que eu tinha.
E para não morrer de fome eu comi alguns insetos, mas como
eles não tem adiantado muito, exatamente ontem eu comi uma parte do meu pé
esquerdo, o gosto é horrível, mas como eu disse, não tinha outra opção.
Agora você me pergunta como eu vim parar aqui? Pois bem,
aconselho que você se sente porque a história é um pouco longa, não só envolve
o que aconteceu para eu chegar até aqui, mas também pesquisas que eu fiz muito
antes de eu estar nesse buraco de bosta em que estou.
Tudo começou em um dia que eu estava na livraria limpando
alguns livros antigos, até que no meio daquela velharia eu encontrei uns
recortes de jornais que particularmente me deixaram um pouco intrigado, falava
exatamente da macabra história do prédio nº 50 da Praça Berkeley, o exato
prédio em que nos encontramos nesse momento.
Eram histórias sobre várias mortes que provavelmente
ocorreram por aqui há muito tempo atrás, e que por isso o local é assombrado e
que o último andar é o centro de todo o horror que esse lugar guarda.
Eu sinceramente nunca acreditei muito nessas baboseiras, pelo
menos até certo tempo atrás, mas de uma forma ou de outra, essas histórias me
deixaram um tanto curioso, então resolvi dar uma pesquisada mais a fundo no
assunto.
Dediquei um mês da minha vida a essas pesquisas, nem eu mesmo
entendia o porquê de querer de saber mais detalhes sobre essa besteira toda.
Procurei outros jornais, alguns livros que falassem dos locais assombrados de
Londres, e também conversei com moradores da Praça Berkeley.
Fim das contas, descobri muitas histórias bizarras sobre esse
lugar, muitas delas até cruéis, histórias essas que se você está aqui preso
também já deve saber como elas são, mas se você não sabe, vá por mim, continue
dessa forma, não vale a pena saber, é de tirar o sono.
Ainda havia o fato de que o último andar hoje é trancado e
que ninguém tem autorização para entrar nele, o que me deixou muito mais
curioso em relação a essa história toda. Passei dias e noites me perguntando o
que havia naquele andar, passava noites sem dormir apenas imaginando nas
possibilidades.
E ainda havia mais um pequeno detalhe, que pode parecer até
besteira, mas me dava muitos calafrios só de pensar. Há um funcionário da loja
que me tira do sério, o zelador para ser mais exato, o nome dele é Dupre, e
duas coisas me incomodavam nele, a primeira é o fato de não lembrar o porquê
que aquele nome me era familiar, e a segunda era porque ele vivia olhando não
só pra mim, mas também para todos da loja como se estivesse planejando algo
maligno contra nós, eu sempre procurei evita-lo.
Até que um dia eu fiquei decidido de tirar todas as minhas
dúvidas sobre aquele lugar da melhor forma possível, e essa forma seria entrar
no último andar, mas como eu iria fazer isso... Essa era uma boa pergunta.
Então em um “belo” dia eu resolvi ficar até um pouco mais
tarde na livraria e esperar algum momento que o velho Dupre bobeasse e eu
conseguisse entrar na sala dele e pegar as chaves do último andar, e por
incrível que pareça isso não foi muito difícil, porque bastou apenas um momento
em que ele foi limpar uma bagunça que fiz no banheiro para eu entrar lá, e
pegar as chaves, que para a minha surpresa estavam bem à mostra penduradas em
um chaveiro.
E eu achando que elas estariam protegidas a sete chaves
dentro de um cofre ou em algo parecido, fiquei bastante intrigado.
Conseguindo as chaves, eu subi até o último andar, abri a
porta com calma e finalmente, estava dentro do temido local, e tenha certeza,
esse local me deu arrepios desde o princípio.
No primeiro momento em que estive dentro desse inferno, eu
fiquei imaginando todas as terríveis histórias que ocorreram aqui dentro, o que
me deixava mais tenso ainda, qualquer ruído me assustava, acho que posso dizer
que nunca tinha sentido tanto medo assim em toda a minha vida.
Vasculhei bem o local a procura de algo interessante, e o
máximo que eu achei foram aos retratos do corredor, comecei a analisa-los, e
desde o princípio eu sabia de que encontraria algumas respostas nele, chegarei
nessa parte mais a frente. E no retrato da família eu tive a impressão de
reconhecer um homem que está nele, mas não conseguia me lembrar do porque que
me era tão familiar, ou onde já teria visto esse cidadão.
Depois de alguns minutos eu já não suportava mais estar
dentro desse local maldito, então me dei por satisfeito com tudo que vi e fui
sair dali o mais rápido o possível, antes que minha sanidade fosse para o saco.
Sendo que foi a partir daí que esse grande pesadelo começou
para mim, quando cheguei perto da porta, eu vi o maldito zelador a fechando e
me trancando lá dentro. Gritei desesperadamente, implorei para que o filho da
puta abrisse aquela merda, mas sabia que nada adiantaria.
E assim começou esse maldito pesadelo, mesmo com todo o
barulho que eu fazia, parecia que ninguém me escutava, ninguém ligava, ou sei
lá. Passei dias dentro dessa merda de lugar fazendo apenas as seguintes coisas:
Nada, barulho e andar de um lado para o outro sem rumo nenhum, e observando os
retratos do corredor enquanto isso, procurando alguma resposta neles.
Depois de uns três dias a minha fome já estava em um nível
insuportável, foi quando eu tive que apelar para a autofagia, começando com os
dedos do pé, e da mesma forma que a minha fome aumentava, a minha sanidade ia
embora aos poucos, passei a ter aquela chata sensação de não saber mais o que
era e o que não era real.
Todas as noites eu ouvia alguma barulho estranho, fosse porta
rangendo, janela batendo, vidro quebrando, choro de crianças, e nunca fazia
ideia de onde vinham esses sons, na minha cabeça eles eram todos do além, ou
apenas coisa da minha imaginação mesmo.
E também todas as noites eu tinha esses sonhos estranhos,
onde eu nunca participava deles, apenas observava sem poder interferir. Eu
sonhava com os horríveis acontecimentos que ocorreram naquele andar, todos
aqueles cuja eu já tinha lido anteriormente. Era agoniante ver aquelas coisas
horríveis ocorrendo bem diante dos meus olhos e não poder fazer nada, isso sem
falar quando sonhei com o doido que era mantido preso pelo irmão no quarto
desse mesmo andar, em que eu reconheci o homem que entrava no quarto o
ameaçando se ele não calasse a boca, era o mesmo que reconheci no retrato da
família que estar no corredor.
Foi quando me dei conta de que esses sonhos também me dariam
as respostas para as minhas perguntas, e aquele rapaz era o elo principal
daquilo tudo. A partir daí eu passei a dedicar boa parte do meu tempo tentando
ligar os pontos, começava a lembrar de tudo aquilo que pesquisei antes de
acabar preso nesse inferno em forma de prédio.
Chegou a um momento que eu passei a ignorar tudo ao meu
redor, a fome, a sede, a dor, os ruídos estranhos, tudo. Minha preocupação
maior era desvendar aquilo tudo, já tinha ignorado o fato de ter se passado
cinco dias e ninguém parecia ter vindo a minha procura, apesar de que eu também
poderia encontrar a resposta pra essa pergunta também.
E antes de continuar, se você for outro mero infeliz que
cometeu o mesmo erro que o meu e acabou preso aqui também, devo avisa-lo que
verdades não muito legais serão esclarecidas nessa parte da carta, pois então
eu recomendo que se prepare bem psicologicamente antes de seguir adiante, pode
ser chocante.
Tendo isso em mente e com a cabeça preparada com o que estar
por vir, pode seguir adiante, e lhe desejo boa sorte e muita força nesse
momento.
Foi após um longo cochilo que eu comecei a ligar os pontos,
tudo começou a fazer sentido, os sonhos, os retratos do corredor, as histórias
todas desse lugar, e até mesmo o filho da puta do Dupre, pior ainda, o velho é
o elo principal dessa merda toda.
A resposta veio após eu ter sonhado com esse puto me
espancando enquanto eu estava preso em uma camisa de força e sentando em uma
cadeira com as pernas amarradas, e exatamente dentro desse quarto maldito, no
momento em que ele ia me açoitar com um chicote, eu acordei.
Foi então que todas essas coisas se passaram na minha cabeça
como se fosse um filme, inclusive todo o processo que passei para pegar as
chaves e entrar nesse inferno, e a partir daí tudo começou a se conectar.
E eu finalmente lembrei o porquê que o nome “Dupre” me era
familiar, era o nome de um dos antigos donos daquela casa, mas específico o
homem que mantinha o irmão doido preso no quarto do último andar, o mesmo que
apareceu no meu sonho, e o mesmo que está no retrato da família no corredor.
Certamente, no sonho e no retrato ele está mais jovem, mas
isso tudo me leva a entender que o velho zelador é algum parente do Sr. Dupre,
ou pior ainda, é o próprio Dupre que viveu aqui há anos atrás, o que não faz
sentido, já que segundo a história, ele viveu ali nos anos de 1800, ou seja,
supostamente já era para o velho ter virado pó. E se aquele zelador for
realmente o Dupre original, isso torna a história cada vez mais assustadora.
Enquanto o retrato de mulher velha que também está no
corredor, eu suponho que seja a mãe dele. Isso porque essa mesma mulher também
está no retrato da família, um pouco mais difícil de reconhecer, mas está. Sendo
que ela estava mais sentada ao centro, e também no meu último sonho eu reparei
que o velho Dupre carregava consigo o mesmo retrato dela no colar em seu
pescoço.
Então a partir daí eu comecei a me perguntar: Há quanto tempo
o velho Dupre está nessa casa? Segundo os funcionários da livraria, ele
trabalha aqui a mais ou menos 30 anos, mas se tratando de um Dupre (ou o
próprio Sr. Dupre em pessoa) tenho certeza que é há muito mais tempo.
E talvez isso explique o porquê que ele sempre agiu estranho
com todos dentro da loja, nunca pareceu gostar de ninguém, nem sequer deu um
“bom dia” de boa vontade seja lá pra quem fosse desde o meu primeiro dia.
Muitas vezes eu olhava para ele e tinha a sensação dele estar planejando algo
maligno contra a gente, na época eu achava que era só viagem minha, mas agora
faz sentido.
E digo mais, por mais doido que isso pareça, tenho certeza
que isso tudo que estou passando é um plano dele. Ele planejou essa merda toda
e nesse momento deve estar rindo da minha cara, desde o princípio ele queria
que eu entrasse nesse maldito último andar, isso explica o porquê que a chave
estava tão exposta na sala dele sem proteção nenhuma.
E certamente, ele próprio que trancou a porta me prendendo
aqui dentro, e o mesmo não moveu um dedo para me tirar daqui mesmo sabendo que
eu estava aqui.
Porque ele fez isso, eu não sei talvez ele seja realmente
doido, o que é mais provável, talvez ele tenha alguma outra razão específica,
enfim, o fato é que eu não faço a menor ideia.
Em uma das minhas teorias, eu suponho que ele queira manter a
“maldição” desse lugar, talvez essa seja a missão dele, e talvez seja por isso
que o Dupre esteja ai até hoje. Outra teoria que eu tenho é que talvez o velho
esteja ligado a alguma seita e que por isso está vivo até hoje e ainda se
mantem na casa seja lá como fosse, possivelmente, a alma dele já esteja ligada
a esse local. Seja qual fosse a teoria, não deixa de ser assustador.
Mas é isso, se você é outro infeliz que ficou preso aqui que
nem eu saiba que se você de alguma forma achou o nome “Dupre” familiar,
provavelmente foi por isso.
Já estou vendo que me alonguei muito nessa carta, não sei o
quanto de tinta a minha caneta ainda tem, então serei direto nessa parte que provavelmente,
será a parte mais dolorosa pra você.
Se você é um azarado que acabou preso aqui que nem eu,
provavelmente ainda tens a esperança de algum ser caridoso aparecer e salvar
você dessa merda de pesadelo, mas sinto lhe informar de que essa sua “esperança”
não passa de uma mera ilusão.
Provavelmente você também está passando por isso, não importa
o quanto de barulho fizer e o quão alto for, ninguém irá te escutar, repito,
NINGUÉM. Não sei por que isso acontece, mas é a verdade, eu mesmo já tentei
chamar a atenção de todas as formas possíveis e parece que até as pessoas que
estão nas lojas estão ignorando o fato de está tendo barulhos estranho vindo do
andar de cima.
Pode parecer loucura minha, mas a impressão que eu tenho é
que algum “feitiço” foi lançado impedindo que as pessoas ouçam meus gritos de
socorro, é a única probabilidade que faz sentido para mim.
Isso sem falar no fato que nenhum conhecido meu veio a minha
procura, nem mesmo meu amigo daqui da livraria que sabia do meu plano de entrar
no último andar. Eu não acredito que da noite para o dia, os meus entes
simplesmente pararam de se importar comigo, alguma coisa deve estar
acontecendo, isso sem falar que minha mochila ficou lá embaixo pela loja,
alguém deve ter a encontrado e estranhado o meu desaparecimento.
Tenho certeza que aquele velho filho da puta do Dupre está
fazendo todo o possível para me deixar preso aqui em cima, deve estar se
livrando de todas as evidências que provem que eu ainda estou aqui pelo prédio,
provavelmente esse maldito se livrou das minhas coisas de alguma forma, isso é
tudo uma merda de plano desse puto.
O que reforça ainda mais a teoria de que ele fez de tudo pra
me prender aqui dentro, fez com que essa merda toda fosse possível, desde o
princípio esse porra armou tudo, e juro, que se ocorrer dele aparecer na minha
frente em algum momento, eu o mato com as minhas próprias mãos.
Aliás, o que ele é? Um humano? Um fantasma? Um alien? Uma
merda de aparição? Um feiticeiro? Um Deus? E o que raios ele quer com isso
tudo? Isso é algum tipo de missão que lhe foi designada? São muitas perguntas cuja
resposta eu provavelmente nunca terei.
Mas a principal pergunta que me faço é: Um dia eu sairei
daqui? E se sim, morto ou vivo? Infelizmente, eu acho que já tenho a resposta
para a última pergunta.
Como já deixei bem claro, minhas esperanças nesse momento de
alguém me encontrar por aqui são quase nulas, e eu sinceramente não sei mais o
que fazer, tudo que era possível eu já fiz.
Então, tenho apenas duas opções, ou simplesmente fico
sentando aguardando uma morte lenta e dolorosa, ou acabo com o meu sofrimento
agora mesmo, fiquei pensando bastante sobre isso antes de escrever essa carta,
e depois de refletir muito, já tenho a minha decisão tomada.
Por isso digo oficialmente que essas serão minhas últimas
palavras ditas para o mundo, que no momento que eu encerrar de escrever essa
carta, eu darei fim a minha vida. E a única esperança que me resta agora é de
que um dia meu corpo seja encontrado e que meus entes um dia saibam do que
aconteceu comigo, o que infelizmente eu não tenho certeza nenhuma.
Você que está lendo esta carta pode ser concretização da
minha esperança, ou a concretização do meu medo, que é de ter meu corpo
apodrecendo nesse local pelo resto da eternidade.
Se for o primeiro caso, peço para que mostrem essa carta para
a minha família, que digam a todos eles que eu sempre os amei, e peço também
para que cremem meus restos mortais. E meu último pedido, é para que
investiguem o filho da puta do Dupre, eu descansarei em paz se souber que esse
maldito pagará pelo o que está fazendo comigo.
E se for o segundo caso, eu simplesmente lhe passo o meu
profundo pesar, como eu disse anteriormente, não lhe restam mais esperanças,
odeio ter que lhe dizer isso, mas após o término desta carta você terá que
fazer uma importante escolha, a mesma que eu tive que fazer, ou você esperará a
morte chegar de forma lenta e dolorosa, ou então você acaba com isso tudo o
mais rápido possível.
E fazendo isso, torço para que o seu destino não seja igual
ao meu, que no futuro não muito distante alguém descubra o que aconteceu não só
com você, mas também comigo.
Mas de uma forma ou de outra, peço para que tome essa decisão
atenciosamente, e que você se prepare bem psicologicamente bem para isso, caso
não tenha como fazer que nem eu fiz e escrever você próprio uma carta, deixe
essa mesma a qual você está lendo próxima aos seus restos mortais, quem sabe um
dia ela não seja lida por alguém que possa mostrar ao mundo o que aconteceu
aqui, né?
Desejo-lhe toda a sorte do mundo, e todas as forças
possíveis, não só para você, mas também para os seus familiares, que Deus
esteja com todos vocês.
E Dupre, se por algum acaso você ler esta carta, e tenha
chegado até essa linha a qual eu escrevo, saiba que um dia você pagará pelo o
que está fazendo comigo, e espero que esse dia não demore, e que seja doloroso
para você da mesma forma que está sendo doloroso para mim, morra no inferno,
seu velho filho da puta.
E assim encerro esse meu longo depoimento, se você for alguém
que possa mostrar essa carta para o mundo e divulgar o que aconteceu aqui, desejo
pra você e para todo o resto toda a paz possível, fiquem com Deus.
Assinado pela última vez, Richard.
---FIM DA CARTA---
Charlie estava perplexo com aquilo tudo que ele leu, após
fechar a carta, ele começou a refletir um pouco sobre aquilo tudo, e chegou a
conclusão de que tudo aquilo fazia sentido, inclusive as partes em relação ao
velho Dupre. Ele não sabia se sentia raiva, se chorava, se entrava em
desespero, ou se simplesmente não fazia nada e aceitava o seu destino, durante
esse meio tempo ficou se perguntando inúmeras vezes: “Será que realmente eu
nunca sairei daqui?”
Não havia mais esperanças, aquele era o fim, mais uma vez o
filho da puta do Dupre venceu, aquele velho maldito. Charlie olhou bem para os
resto que ainda haviam do esqueleto-que-ali-jazia, e dessa vez não o olhou mais
de forma assustada, e sim com pena.
Com pena de pensar que provavelmente os seus familiares nunca
souberam o que aconteceu com ele, com pena porque ele não teve o direito de ter
um enterro digno, com pena em ver que ele passará toda a eternidade naquele
inferno de lugar, e ao mesmo tempo se sentia desesperado ao perceber que o seu
destino era o mesmo dele.
Uma das coisas que Charlie mais temia era morrer sem aqueles
que ele ama saberem o que aconteceu com ele, e ao que parecia, esse medo iria
se concretizar. Começou a pensar na Jennifer, tentava imaginar o como ela
estava nesse momento, com certeza, preocupada.
Também começou a lembrar dos seus últimos momentos com ela, o
como ela agiu naquele dia, o seu ar de preocupada, como se soubesse que alguma
coisa ruim iria acontecer. Lembrou-se do seu último abraço, um daqueles abraços
que diziam algo para você, e nesse caso simplesmente dizia: “Não vá, fique aqui
comigo.”
Uma lágrima começou a escorrer dos olhos de Charlie, cada vez
mais ele tinha ciência de que nunca mais veria Jen de novo, nunca mais iria
beijá-la, nem abraça-la, não iria ter o casamento perfeito com ela, e nem imperfeito,
simplesmente não a teria mais ao seu lado, e isso o entristecia muito.
Não demorou muito para ele desatar no choro, seu ódio pelo
velho Dupre aumentava cada vez mais, sua maior vontade era de arrombar a porta
do andar de alguma forma e esganar aquele zelador maldito.
Charlie precisava fazer uma escolha, ou ele sentaria a
esperaria a morte de braços aberto, ou mantinha a sua falsa esperança de que
alguém aparecerá para ajuda-lo, ou então dava fim a sua vida.
Já não havia mais sanidade dentro dele, os sons estranhos
ficaram cada vez mais altos em sua cabeça, não fazia ideia de onde eles vinham,
e quando os mesmos se misturavam com os sons da tempestade que caia lá fora, Charlie
tinha vontade de gritar até não poder mais.
- PAREM, PAREM, POR FAVOR! – esbravejava – CALEM A BOCA POR
UM MINUTO, É TUDO QUE EU PEÇO.
Mas não havia ninguém falando.
Charlie estava perto de tomar sua decisão, e mesmo hesitando
por alguns instantes, ele tinha certeza de que era aquilo que queria. Não
aguentaria esperar sentado pela morte, e também não era mais tão inocente a
ponto de achar que conseguiria sair daquele local com vida, então só lhe havia
uma última opção...
O que levava a outra pergunta: Como ele faria isso?
Inicialmente pensou em usar o isqueiro de David, mas ele não
tinha nada inflamável consigo e o mesmo já estava praticamente sem gás após ser
utilizado para a longa leitura da carta do esqueleto-que-ali-jazia.
Procurou algo que estivesse próximo ao esqueleto que fosse
útil, algo que provavelmente o mesmo teria usado para tirar a própria vida, mas
nada do tipo foi encontrado. A cabeça de Charlie estava tão agoniada que ele
nem se deu o trabalho de pensar o como o Richard teria se matado e o que ele
teria usado.
Foi então que se lembrou da tábua que utilizou para matar o
rato, ela ainda estava por ali, se lembrou que a mesma tinha a ponta de um
prego solta, com certeza serviria, seria até mais eficaz.
Começou a procurar pela tábua, a falta de luminosidade não
ajudava muito, já não tinha mais o auxílio do isqueiro, o que lhe restava era
apenas os relâmpagos que vez ou outra iluminavam o quarto por algumas frações
de segundos. Em um desses curtos momentos de iluminação que Charlie conseguiu
avistar a tábua próxima ao que ainda restava do rato, e assim, se rastejando
foi em direção ao mesmo.
Quando a alcançou, analisou-a com atenção mais uma vez, por
mais que estivesse decidido ainda hesitava bastante, aliás, ninguém nunca está
pronto para a morte, seja ela como for. E mais uma vez Charlie voltou a pensar
na Jennifer, mas dessa vez não apenas nela, mas também no David, na sua
família, em todo o pessoal da livraria, no Richard, e claro, no velho Dupre.
Via o rosto de Jen em sua cabeça chorando, isso estava o
deixando mais louco do que já estava, queria mandar essas lembranças embora,
mas não conseguia, ele simplesmente queria acabar com aquilo logo da maneira
mais rápida e menos dolorosa possível.
Mas esse era o porém, ser doloroso ou não, imaginava na
sensação daquele prego atravessando a sua garganta e sentia um calafrio só de
pensar, Charlie queria fazer aquilo, mas ao mesmo tempo também não queria.
Ouvia a voz da Jen em sua cabeça o mandando ser forte, mas se
questionava se ainda tinha forças pra isso, se nem ao menos estava conseguindo
arrumar forças para acabar com o próprio sofrimento. E depois de alguns minutos
com esse conflito interno em sua cabeça, Charlie falou baixo para si mesmo:
- Desculpe Jen, mas não há outra saída... – deu uma pausa,
tentava segurar as lágrimas, mas não conseguia – desculpe mesmo, querida, eu te
amo muito. – continuou
E tendo arrumado as forças que precisava, Charlie pegou a
tábua, apontou o prego para a sua garganta, e assim começou a perfura-la. A dor
era infernal, mas já estava sendo feito, não havia mais como voltar atrás, ele
também não queria, iria seguir em frente com aquilo de uma forma ou de outra.
Após perfurar profundamente a garganta, começou a fazer um corte de uma lateral
à outra do pescoço.
À medida que ia sentindo o sangue escorrendo em sua roupa,
também via seus sentidos irem embora aos poucos. Escutava um alto zunido em
seus ouvidos, sua visão começou a ficar embaçada, a movimentação do seu corpo
ia embora aos poucos, sua força diminuía a cada gota de sangue derramada.
Até que chegou o momento em que não tinha mais força para
segurar a tábua, que tinha finalizado o longo corte em seu pescoço, e assim a
soltou, fazendo com que o sangue jorrasse cada vez mais da sua garganta e que
caísse no chão. Naquele momento, Charlie já tinha conhecimento de que aquela
morte não seria rápida e indolor, aliás, sentia isso na pele, foi uma das
últimas coisas que se passou pela cabeça quando ainda lhe restava um pouco de
consciência.
Charlie deitou de bruços, e sua última visão foi a janela
daquele maldito quarto, onde via a tempestade ainda caindo sobre Londres, aos
poucos os sons dos trovões foram sendo abafados, oitenta por cento da sua visão
tinha sido perdida, e sua respiração estava parando aos poucos.
Em suas últimas tentativas de manter os olhos abertos,
Charlie teve a impressão de ver várias pessoas ao seu redor o observando, se
fosse dar um palpite, diria eram os fantasmas de todas as vítimas daquele lugar
maldito, e agora ele tinha se tornado um deles, e lá eles estavam para lhe dar
as boas vindas.
Foi então que Charlie finalmente tinha se dado conta, seu fim
tinha chegado. Suas forças finalmente acabaram, e assim ele fechou os olhos e
caiu nos braços da morte.
EPÍLOGO
E essa foi à trágica história de Charlie, um jovem que ao
tentar descobrir os mistérios da história do prédio nº 50 da Praça Berkeley, se
tornou uma parte dela, mas diferentes de boa parte delas, a sua não foi contada
após gerações, simplesmente porque até hoje ninguém sabe do seu envolvimento
com ela.
E mesmo após isso tudo, ainda há várias perguntas a serem
feitas, entre elas, o que aconteceu com os conhecidos de Charlie? Eles foram a
sua procura? Como o Dupre escondeu as pistas de que Charlie ainda estava no
prédio? E muitas outras.
Mas o fato é que sim, foram à procura de Charlie, na verdade,
ainda estão procurando ele, Jennifer estranhou quando acordou na manhã seguinte
e não o viu em casa, sendo assim ela ligou para David perguntando por ele.
David falou que Charlie teria ficado até tarde na livraria,
mas não disse o porquê para ela, ficou com receio achando que Jen teria raiva
dele por isso.
Naquele mesmo dia, David falou com todos os funcionários da
loja perguntando por Charlie, nenhum deles soube responder. Ele também foi
perguntar para o velho zelador, principalmente porque ele mora ali e com
certeza daria uma certeza, mas certamente ele negou ter o visto, porém, David
não engoliu isso.
Rapidamente, Jen acionou a polícia para procurar Charlie, e
David insistiu para que eles investigassem mais profundamente o velho Dupre, e
assim eles fizeram. Quando o interrogaram, o zelador negou ter visto Charlie em
qualquer momento naquela noite, e disse que poderia provar através das câmeras
de seguranças da Praça Berkeley.
Quando todos foram ver o vídeo, eles viram exatamente o
Charlie saindo da loja embaixo da tempestade daquela noite, indo em direção a
sua casa, e todos aqueles que o conheciam puderam garantir que era ele naquele
vídeo.
Nem os cães farejadores encontraram algum rastro do Charlie,
nem mesmo quando passaram pela escada que leva ao último andar do prédio. Os
dias passaram, até a polícia encerrar as buscas.
Jennifer ainda tem esperanças de um dia reencontrar Charlie
ainda com vida, mesmo tendo passado quase um mês desde o seu desaparecimento, e
desde então ela não tem conseguido dormir direito se perguntando o que
possivelmente teria acontecido com ele, Jen desde então não conseguiu mais ser
feliz, muitos o davam como morto, mas esperança era tudo que lhe restava.
E o que aconteceu com as coisas que Charlie tinha deixado
dentro da loja? Simples, o velho Dupre as jogou na lareira, o casaco e o
guarda-chuva, ele foi cuidadoso para não deixar nenhuma pista que o
incriminasse.
Agora, por que ninguém ouviu os barulhos que Charlie fazia no
último andar? Ninguém tem uma resposta certa para isso, apesar de que a noite,
alguns moradores dos arredores da praça relataram ter ouvido vários barulhos
estranhos vindo do prédio a noite, mas não deram muita importância, já que isso
é a coisa mais normal vindo de lá, mesma coisa em relação aos funcionários da
livraria que também ouviram esses estranhos ruídos.
Mas o fato mais intrigante é que, mesmo depois de um mês,
essas pessoas continuam ouvindo esses mesmos ruídos vindo do último andar do
prédio, e a cada dia eles ficam mais fortes, mais incômodos e mais
assustadores.
Certamente, há outras várias perguntas em abertos, muitas
delas cuja resposta nós nunca teremos, os mistérios daquela maldita casa
durarão para sempre, e nenhum homem vivo será capa de desvenda-los.
E enquanto ao pobre Charlie, ele passou a ser mais uma das
almas penadas que assombram o prédio nº 50 da Praça Berkeley. Ele nunca mais
foi encontrado, e seus restos mortais permaneceram no último andar do prédio
por toda a eternidade.
Fim
Muito bom 10/10 tldr; 1408
ResponderExcluir